Dimensão analítica: Educação e Ciência
Título do artigo: O vigor da pseudociência
Autor/a: Diana Barbosa, João Monteiro, Leonor Abrantes
Filiação institucional: COMCEPT – Comunidade Céptica Portuguesa
E-mail: info@comcept.org
Palavras-chave: ciência, pseudociência, cultura científica.
Entrevista conduzida por João Aguiar, Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
1 – A pseudociência tem-se disseminado de um modo vincado. Paradoxalmente, tal facto ocorre num período histórico em que nunca houve tanto impacto do desenvolvimento científico e tecnológico. A que pensam que se deve este desfasamento?
Efectivamente, parece que estamos a assistir a uma espécie de repetição de um outro momento histórico: durante o século XIX e início do século XX, quando os avanços tecnológicos e científicos foram muito acelerados em vários campos (física, química, medicina) também se assistiu à proliferação de ideias contrárias ao conhecimento científico ou mesmo provocados por ele. Por exemplo, em relação à medicina, o conhecimento científico em torno da fisiologia, anatomia e mesmo patologia, parece ter reduzido o corpo humano a uma máquina e não é de estranhar que tenham surgido ideias contrárias a essa redução, como as ideias vitalistas e uma tentativa de retorno à natureza. Grande parte das chamadas terapias não convencionais, de hoje em dia, têm origem nesta altura. Ao mesmo tempo, é também no século XIX e inícios do século XX que se desenvolvem as grandes correntes do espiritualismo e esoterismo. Provavelmente, um reflexo da luta contra aquilo que era entendido como uma mecanização da natureza.
De facto, poder-se-ia esperar que com o aumento da instrução e do conhecimento científico essas práticas caíssem gradualmente em desuso, mas não foi isso que aconteceu. Paradoxalmente, a pseudociência tem-se aproveitado desse desenvolvimento científico e tecnológico a seu favor, para se reinventar e até difundir. Por definição, a pseudociência é algo que tenta passar por ciência sem o ser, tentando imitar a ciência não só nos procedimentos como no jargão técnico. Com o desenvolvimento científico vieram novas descobertas e novo jargão técnico das quais a pseudociência se apropriou para tentar adquirir credibilidade, por isso é normal vermos associados termos científicos na promoção da pseudociência, tais como “energia”, “iões”, “quântico”, “epigenética”, entre outros. Esses são verdadeiros termos científicos, mas que, no contexto da pseudociência, têm um conteúdo vazio, ou seja, não significam nada. Também as redes sociais digitais têm tido aqui um papel importante: por um lado democratizaram a opinião (o que é positivo), mas por outro lado possibilitaram a promoção de ideias erradas de um modo acelerado e incontrolado (que é o aspecto negativo). O facto de estas mesmas redes sociais digitais permitirem a criação de grupos, em que se juntam pessoas que têm ideias semelhantes e sem acesso ao contraditório, faz com que se fortaleça a crença, que se crie um espírito tribal na defesa dessas ideias, e, por conseguinte, uma pressão de grupo de modo a influenciar os poucos que ainda pensam de maneira diferente. Assim, respondendo à pergunta colocada, o vigor da pseudociência num contexto de omnipresença de conhecimento científico e da tecnologia deve-se a fenómenos sociais que sempre existiram, mas agora amplificados pelas redes sociais e outros desenvolvimentos tecnológicos.
2 – De que forma avaliam a aprovação das chamadas “terapias” alternativas no Parlamento em 2019? Tomando em consideração que, por exemplo, num estudo publicado no JAMA Oncology «patients who received CM [Complementary Medicine] were more likely to refuse additional CCT [Conventional Cancer Therapy], and had a higher risk of death. The results suggest that mortality risk associated with CM was mediated by the refusal of CCT», que consequências podem advir para a saúde da população?
Fazemos uma avaliação muito negativa de todo o processo. Se, por um lado, reconhecemos que essas “terapias” estavam a ser praticadas e que, portanto, o seu exercício deveria ser regulamentado, por outro lado discordamos do resultado legislativo final por várias razões. A principal razão é o ter-se dado credibilidade política a algo que não tem credibilidade científica, gerando confusão junto dos cidadãos, levando-os a pensar que se estas práticas estão regulamentadas é porque são eficazes, o que não corresponde de todo à verdade.
O diploma que regulamenta as Terapias Não Convencionais (TNC) trata-as como actividades económicas no âmbito dos cuidados de saúde, tratando-as como complementares à medicina mas ignorando o facto de, na verdade, serem contrárias à prática médica de base científica (tanto nos princípios, como nas práticas). Estas TNC podem, como o artigo citado indica, afectar negativamente a saúde das pessoas e, até mesmo, levar à morte. Não há qualquer indicação de que houve uma análise crítica a cada uma delas e não existe qualquer justificação para a escolha destas em detrimento de qualquer outra terapia dita não convencional.
De facto, parece existir uma correlação entre o recurso às TNC e o abandono da medicina com base na ciência. Este comportamento traz consequências negativas para a saúde dos indivíduos porque abandonam tratamentos médicos (normalmente em caso de doenças crónicas) e, só quando atingem um estado de saúde precário, é que regressam ao médico, sendo que muitas vezes já é demasiado tarde, acabando por falecer prematuramente. Por outro lado, o uso de TNC também traz consequências para a saúde pública, uma vez que muitos dos praticantes das TNC, como a homeopatia ou a naturopatia, assumem uma posição vincadamente anti-medicina, ao recusarem o uso de medicação e rejeitarem medidas de saúde pública como a vacinação. É na prática das TNC que encontramos um exemplo da diferença entre o que é o “discurso público” e o “discurso privado”: enquanto que em meios de comunicação, programas televisivos e entrevistas os promotores das TNC referem-se às mesmas como complementares aos tratamentos médicos (discurso público), a verdade é que em consultas e grupos fechados de redes sociais referem-se como alternativa à medicina, chegando mesmo a denegrir esta (discurso privado). Mais uma vez, este discurso leva a que os cidadãos evitem recorrer aos médicos, ou só façam em estado avançado da doença. E, por falar em grupos fechados do Facebook, os terapeutas e os promotores de curas milagrosas costumam entrar em grupos de pacientes de doenças crónicas (pessoas normalmente fragilizadas) e oferecer os seus serviços; os membros que criticam esses alegados tratamentos sofrem tentativas de silenciamento, seja por parte dos vendedores/terapeutas que enviam mensagens privadas com ameaças, seja também por parte de outros membros que recorrem às TNC (neste último caso em comentários públicos). Esta é uma das razões pelas quais poucas pessoas estão disponíveis para dar o seu testemunho de casos que correm mal quando se recorre às TNC, como podem comprovar os jornalistas que tentam abordar este tema. A reportagem mais recente pela revista Sábado, em 2019, conseguiu contactar poucas pessoas, outras não se mostraram disponíveis e outras falaram anonimamente na condição de não dar o nome nem a cara, com receio de represálias.
3 – Lançaram em 2017 o livro “Não se deixe enganar”, onde abordam uma série de ideias feitas sem base científica e as desmontam. Muito recentemente, num programa a 14 de fevereiro, uma apresentadora, a partir da sua experiência pessoal e familiar, considerou que o cancro «é uma doença que eu acho que já tem cura, mas não é comercializada». Temos, assim, figuras públicas, com forte impacto mediático, a veicular teses simplistas baseadas numa conceção muito próxima das teorias da conspiração e quase como que esquecendo o esforço, a dedicação e as conquistas de milhares e milhares de cientistas e investigadores no campo da oncologia. A minha pergunta é: de que forma é que se pode tentar contrariar estas asserções que se fazem valer do testemunho pessoal e da legitimidade da figura mediática?
Com muita dificuldade. Parece mesmo um esforço inglório da parte de quem tenta esclarecer com base fundamentada e em argumentos racionais. As figuras mediáticas têm um grande alcance e são ouvidas e respeitadas por uma grande parte da população. Caso quisessem falar sobre temas que não dominam, o correcto seria falar previamente com especialistas e posteriormente emitir uma opinião fundamentada. Se assim fosse, estariam a fazer um importante serviço público. Infelizmente, não é isto que acontece.
Da mesma forma, os media favorecem este tipo de discurso, porque atrai público e o cepticismo nunca é bem visto.
4 – Uma das afirmações mais categóricas em assuntos relacionados com a saúde e a alimentação é a de que “o natural é bom” ou “o natural não tem químicos”. Querem comentar estas afirmações que estão na base do que usualmente se denomina de “quimiofobia”?
Tudo no universo que nos rodeia é constituído por elementos químicos e, como consequência, por “químicos”. Mas a palavra “químico” passou, na gíria popular, a ser sinónimo de “químico sintético” e “químico prejudicial”. Vender produtos “sem químicos” nada mais é do que uma manobra de marketing que se aproveita desta quimiofobia prevalente na sociedade, neste caso resultado de falta de literacia científica. A dicotomia “natural é bom” vs “químico/sintético é mau” não tem razão de ser: basta pensar que há produtos ou alimentos “naturais” que são prejudiciais à saúde ou mesmo letais (como os cogumelos venenosos ou a cicuta), ou que produtos sintéticos têm menos efeitos secundários que a sua versão “natural” (como o ácido acetilssalicílico, mais conhecido como aspirina). Em ambos os casos, o que interessa relembrar que a dose é o que faz o veneno. Uma etiqueta “natural” ou “livre de químicos” provavelmente é falsa e não é, de forma alguma, sinónimo de “saudável” ou “seguro”. Mas é muito rentável.
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