Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública
Título do artigo: A Qualidade como Nova Narrativa de Controlo Institucional
Autor: Ricardo Cunha Dias e Diogo Guedes Vidal
Filiação institucional: Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP), Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa; FP-ENAS, Universidade Fernando Pessoa
E-mail: rdias@iscsp.ulisboa.pt, diogoguedevidal@hotmail.com
Palavras-chave: Qualidade, Controlo Institucional, Governança.
Em Portugal, há uma nova narrativa que está a mudar a forma como as instituições públicas funcionam. Difundida internacionalmente [1], tal narrativa prende-se com o controlo da qualidade das leis e dos regulamentos como via para aumentar a eficiência, a produtividade e o impacto dos modelos de governação das políticas públicas e seus outcomes. O seu surgimento dá-se num contexto em que a Governança Pública, modelo sucedâneo da Nova Gestão Pública e da fragmentação institucional por si criada, implicou uma perda de protagonismo do Estado, que passa de único regulador a coordenador de redes onde múltiplas agências de regulação, nacionais e internacionais, proliferam. Sabe-se já que esta mudança do papel do Estado fez aumentar os mecanismos de politização de controlo dentro das instituições públicas [2]. O que se pretende aqui argumentar é que esta nova narrativa do controlo da qualidade está também a ser utilizada para aumentar o controlo sobre os processos e sobre as pessoas, e não somente dos outputs/produtos, gerando mais burocracia e desvirtuando a qualidade.
O tema do controlo da qualidade tem a sua origem no Toyotismo, modelo de administração da produção que surge na década de 1970 para dar resposta ao desperdício de recursos. Este modelo esteve na base de uma cultura e práticas que visavam eliminar tudo o que não agregasse qualidade ao processo e ao produto, então entendida como produção de ‘defeito zero’. Para tal, os funcionários passaram a colaboradores dotados de autonomia para interromper o processo de produção caso fosse detetado alguma anomalia e para providenciar os devidos reparos. Porém, tratava-se de uma autonomia limitada à determinação prévia daqueles que eram os critérios da qualidade. É depois a partir desta lógica de controlo permanente da qualidade que surgiram os hoje famosos certificados de qualidade ISO. Mais recentemente, a mesma lógica tem sido aplicada às instituições públicas pondo em evidência duas problemáticas relacionadas: entre autonomia profissional vs. politização dos critérios e dos processos de controlo de qualidade, sendo uma problemática da Sociologia da Administração; e entre eficiência/produtividade dos processos vs. satisfação e motivação dos funcionários, sendo uma problemática de fundo da Sociologia das Organizações e do Trabalho.
Quanto à primeira, a narrativa da qualidade veio aumentar uma ‘politização de controlo’ das instituições públicas, cada vez mais prevalecente sobre um padrão de autonomia profissional. Este tipo de politização surge da necessidade de um maior controlo político das atividades institucionais cada vez mais diversificadas que, num paradigma de governança, saem da tutela direta dos governos e passam a depender de organismos externos, responsáveis por atestar a capacidade institucional. O problema é que quando tudo passa a ter como objetivo a qualidade, tudo passa a ser controlo: utilizam-se os critérios da qualidade para aumentar o controlo sobre os processos e as pessoas, e isto tanto é verdade fora como dentro das instituições, que passaram a replicar internamente esta mesma narrativa. Em causa está a sobrevivência institucional, mas também, num segundo nível, dos dirigentes, que recorrem aos requisitos do controlo de qualidade para afirmarem o seu poder e a sua perpetuação. E ao estar institucionalizada e, portanto, legitimada, esta lógica é reproduzida ao longo de toda a cadeia de comando, capturando cada elo numa complexa teia de dependências em que a diferença entre os interesses pessoais e os produtos institucionais deixa de existir.
Em relação à segunda problemática, quando aplicado a instituições em que os processos e os produtos são as pessoas (como na Educação, na Saúde, na Justiça, etc.), o controlo de qualidade implica que cada colaborador acumule à sua função o papel de inspetor da qualidade, não só do resultado do seu trabalho, como de si mesmo, enquanto ‘veículo de transmissão’. Esse papel é determinado, externamente, pelas checklists de critérios de qualidade das instituições que lhes são impostas pelas agências de avaliação e acreditação, e, internamente, pela burocracia necessária ao controlo sobre os processos que dê prova que essas mesmas checklists estão a ser cumpridas. Esse enfoque nos processos e na prestação de contas segundo uma cadeia hierárquica inibe a motivação e satisfação dos intervenientes e a sua capacidade de participação, impossibilitando, dessa forma, os próprios processos de governança.
Em suma, os critérios externos de monitorização e avaliação da qualidade institucional, hoje amplamente apregoados como forma de promover a Boa Governança e a Governança Pública, estão a traduzir-se, dentro das instituições, em critérios burocráticos de gestão por controlo que, ainda que possam servir para credenciar e reconhecer a qualidade dos “produtos” institucionais, esvaziam a colaboração e a coprodução que deveria ser a base de uma governança de/da qualidade. À medida que a retórica da Governança Pública quer fazer crer que estamos a ir em direção a um modelo de governação mais horizontal e colaborativo, a verdade é que as instituições continuam a ser palco de lutas pela sobrevivência das velhas lógicas verticais de comando e controlo. A qualidade torna-se, assim, uma narrativa perigosa, uma vez que, de forma inerente aos seus objetivos, facilmente é reconhecida/legitimada como bem-intencionada, quando na prática o controlo vale pelo controlo e a qualidade passa a ser uma encenação. É em função das formas e das colateralidades de tal encenação que podemos vislumbrar na atualidade muitas das principais insuficiências institucionais.
Notas
- a) Investigação financiada pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, através dos projetos SFRH/BD/135804/2018 e SFRH/BD/143238/2019, ao abrigo de apoios do Fundo Social Europeu, Fundos Nacionais do MCTES e pelo Programa Operacional de Capital Humano.
[1] OECD (2012), Recommendation of the council on regulatory policy and governance. Disponível em http://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/49990817.pdf
[2] Peters, G. & Pierre, J. (2004), Politicization of the civil service. In B. G. Peters & J. Pierre (eds.), The Politicization of the Civil Service in Comparative Perspetive, New York: Routledge, pp. 1-13.
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