Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território
Título do artigo: “O falso testemunho” – Literatura e realidade: percepção e cartografia dos espaços de resistência ao Fascismo no Porto
Autor: Mário João Mesquita
Filiação institucional: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto
E-mail: mmesquita@arq.up.pt
Palavras-chave: Território/Literatura, Espaço/resistência, Porto.
A consciência do espaço, em qualquer das suas dimensões, é algo intrinsecamente ligado ao sujeito. Nesse sentido, a subjectividade é a condição dominante, resultando que, de facto, essa consciência é invenção, criação, entendimento sobre a natureza e transformação dos espaços. Partindo destas premissas, a noção espacial transporta a ideia de que indivíduo ou grupo constroem realidades, entre sínteses e análises, assumindo, no acto criador, posturas conservadoras e/ou transformadoras. O campo da literatura tem demonstrado ser, mais ficcional, jornalístico ou entre os dois, um essencial instrumento de “manipulação” do real, assente no olhar e na vocação do “eu” para trabalhá-lo, reinventá-lo, extrair-lhe a inspiração para as suas criações ou para, somente, ilustrá-lo detalhadamente. Da pluralidade destes “olhares” se alimenta a memória dos povos.
A história da polícia política portuguesa não se cinge à PVDE/PIDE/DGS. Contudo, pelos seus métodos, ligação ao poder autoritário e rede de condicionamento político/social/espacial que montou no território (e a fez poder/saber durar), a polícia a que chamamos “PIDE” é uma marca indelével do tempo entre 1934 e 1974. Tendo na retaguarda uma base documental/etnográfica, no cruzamento ciência/arte, este texto invoca a importância da oralidade e da escrita narrativa, das histórias feitas de outras, entre literatura e realidade, dos relatos dos quotidianos desse período.
Da autoria de Nuno Teixeira Neves, jornalista, preso político na PIDE, à Rua do Heroísmo, no Porto, o livro cujo título pontifica este artigo é um quadro impressivo dos espaços e da consciência da sua vivência, possibilitando uma “arqueologia” informacional de outro modo perdida por sucessivos processos de destruição documental e de alteração funcional/espacial desse edifício e do seu contexto urbano. “O falso testemunho” [1] versa sobre a sua prisão subsequente à recolha de assinaturas para um abaixo assinado (que lhe foi entregue pelo PCP) a favor do “Apelo de Estocolmo” em 1950. Redigido em 2002, intercala, em modo contínuo, duas realidades tangentes, o pensado e o vivido, o sofrido e o imaginado, que correspondem a duas formas de escrita que se complementam e fecham o círculo da análise numa autognose e ensaio que o autor faz do espaço e do seu mundo interior, conduzindo o leitor por contextos e cenas, permitindo-lhe a reconstrução de ambientes, revelando convicções/contradições de espírito. A leitura dos espaços através da descrição cinemática do processo ao longo do cativeiro, “viajando” pelas instalações do “palacete” do Heroísmo, da identificação à cela, dos interrogatórios e torturas nos gabinetes dos inspectores ao gabinete médico, passando pelas escadas e pátios até ao exterior, à cidade. A acção repressiva do Estado Novo é visitada retrospectivamente, ilustrando vividamente as espacialidades, numa “fotografia” a cores, material/imaterial, num estilo diarístico, entre descrição e introspecção, num esforço de catarse individual – tornou-se num documento de referência (em conjunto com “O último dia da PIDE”, com texto de Raúl Castro e “Os clandestinos” de Fernando Namora) à minha obra no edifício da ex-PIDE no Porto – instalação de uma unidade de informação e interpretação da memória da resistência e da repressão, da acção da PVDE/PIDE/DGS no Porto intitulada “Do Heroísmo à Firmeza. Percursos na memória da Casa da PIDE no Porto (1934/74)”.
São precisamente os conceitos de percurso no tempo e no espaço os fios condutores da “viagem” de Nuno Teixeira Neves neste relato/reflexão sobre o Portugal de Salazar. De entre outros momentos do livro, destaco os seguintes pela narrativa impressiva e objectiva de espacialidades que foram transformadas/invisibilizadas após o 25 de Abril de 1974:
(…) O segundo interrogatório foi no Porto. Um agente jovem e bem-posto (…) foi-me reclamar ao calabouço e conduziu-me pela escada de serviço até ao gabinete do terceiro andar. Entrou, logo a seguir, o chefe de brigada e o agente sentou-se à secretária em frente da máquina de escrever. (Neves, 2002:19)
(…) E, recuperando a firmeza, fiz-lhe um segundo apelo porque vira dependurada nas costas de uma cadeira, uma farda militar: «Demais a mais, o senhor tem uma farda que lhe cumpre honrar.» Quando regressei ao calabouço, esperava-me uma tigela de sopa pousada nas tabuinhas de um catre desocupado. (ibidem:21)
(…) Tudo se me agravando quando chegava à casa de banho (…) Talvez por o espelho ser demasiado grande, pensaria, desproporcionado ao uso e revelar o estanho com esfoladelas, junto aos cantos, o que faria sobressair a boa qualidade do cristal, e, simultaneamente, a sua ruína – um paralelo de mim? Casa rica de Oitocentos, o compartimento denunciava o luxo não cómodo dos antigos Senhores. (ibidem:22)
(…) A ampla traça do quarto de banho, o luxo deteriorado em manchas ferruginosas e fracturas pelas louças e azulejos, a ausência de qualquer sinal de cárcere, a importância catártica ou a eufemística cumplicidade das funções aí esquecidas (…) O espelho amplo: eu podia abrir os braços e espalmar as mãos sobre a superfície fria e conduzir até esse limite a baba, abstrusamente aflita, da segurança segregada da cela. (ibidem:33)
(…) A cela, mais propriamente uma arrumação de bailiques, era demasiada para mim e, todavia, escassa. (…) A chamada ao terceiro andar, aguardei-a como o início de um tormento. (ibidem:37)
(…) Saí da sala e verifiquei como, fora, um grupo de chefes ou inspectores continuava tal qual o vi ao entrar, conversando, um deles, pachorrentamente encostado à porta. (…) Conduziram-me à cela paga (…) Depois, as grades do calabouço e a pior cela, a central, que não tinha guarita para a rua e ficava todo o dia às escuras. (ibidem:50).
O “lado de fora”: a certeza convicta de que a resistência à opressão não parava – ao longo de quase cinquenta anos, foram múltiplas as acções que desafiaram política, social e culturalmente o regime. Hoje, estudar esta época é também estudar a rede de espaços e territórios associados a essas acções. Sob a forma de roteiro, visitando a cidade e o seu território, também desde a literatura se avançou para outras “leituras” e cruzamentos disciplinares, dando corpo à publicação de “Bases para um roteiro da resistência ao fascismo no Porto – 1926/1974”.
Os relatos dos presos políticos que passaram pela PIDE no Porto são uma fonte primária de informação essencial na investigação associada ao projecto “Do Heroísmo à Firmeza”. Essas histórias de vida, o “dentro” e o “fora”, os percursos no edifício e os caminhos pela cidade, estão hoje a ser fixados na esfera da memória colectiva através da intervenção em curso no Museu Militar no Porto. Para além de nos ajudar a compreender o quotidiano prisional, as pessoas e os seus rostos e a tornar público documentos e objectos julgados como perdidos, são um precioso instrumento didáctico/pedagógico para informar as novas e as novíssimas gerações, apoiá-las na interpretação da sua história e na criação de pensamento/consciência crítica dos territórios da contemporaneidade.
Nota:
[1] Neves, Nuno Teixeira (2002), O Falso Testemunho, Porto: Campo das Letras.
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