Existe justiça ambiental em Portugal? comparando as geografias da privação social e ambiental

Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território

Título do artigo: Existe justiça ambiental em Portugal? comparando as geografias da privação social e ambiental

Autora: Ana Isabel Ribeiro

Filiação institucional: EPIUNIT-Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP); Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP)

E-mail: ana.isabel.ribeiro@ispup.up.pt

Palavras-chave: justiça ambiental, privação socioeconómica, qualidade ambiental.

O movimento da justiça ambiental nasceu nos anos 80 nos EUA quando um grupo de cidadãos afroamericanos e ativistas se mobilizou contra a instalação de um aterro de bifenilos policlorados no condado de Warren (Carolina do Norte). A justiça ambiental consiste na busca do tratamento justo e do envolvimento de todas as pessoas, independentemente da sua raça, cor, origem ou rendimento, na elaboração, desenvolvimento, implementação e reforço de políticas, leis e regulações ambientais [1]. Desde os anos 80, vários estudos têm vindo a revelar situações que fogem a este principio da justiça ambiental, onde grupos sociais, económicos e raciais mais vulneráveis tendem a estar mais expostos a contaminantes físicos, químicos e biológicos prejudiciais à saúde humana.

A coincidência espacial entre as caraterísticas socioeconómicas da população e a qualidade do ambiente físico pode explicar parte das desigualdades socioeconómicas em saúde observadas nas sociedades humanas desde a Idade Moderna. Um dos mais salientes estudos sobre a presença de desigualdades socio-espaciais em saúde foi realizado no século XIX pelo reformista britânico Edwin Chadwick, estudo este que mostrou uma clara relação entre a distribuição espacial da mortalidade por doenças transmissíveis e a localização das residências da classe operária onde se concentravam problemas de insalubridade, sobrelotação residencial e exposição a diversas fontes de poluição [2].

Investigações recentes têm revelado fortes assimetrias socio-espaciais em saúde no nosso país. Em Portugal, as zonas mais desfavorecidas apresentam taxas de mortalidade cerca de 7% superiores às observadas nas áreas geográficas mais favorecidas [3]. Aliás, existe uma diferença significativa entre os municípios mais e menos favorecidos na probabilidade de sobrevivência dos idosos [4]. E, a nível intraurbano, na cidade do Porto, também existem grandes disparidades geográficas na qualidade de vida, que acompanham as desigualdades socioeconómicas entre as diferentes áreas da cidade [5].

Apesar da presença destas grandes desigualdades socio-espaciais em saúde, pouco se sabe acerca de eventuais disparidades socioeconómicas na distribuição das exposições de natureza ambiental em Portugal. Os poucos estudos existentes sobre o tema versaram exposições ambientais muito particulares, relacionadas com o acesso às áreas verdes [6], mas sabemos que a qualidade ambiental é um conceito multidimensional que inclui o conjunto de exposições do ambiente físico, químico e biológico que rodeia os indivíduos.

Com o intuito de apreender a multidimensionalidade do conceito de qualidade ambiental, em 2015, desenvolveu-se um indicador de qualidade ambiental para Portugal Continental à semelhança do que já havia sido feito no Reino Unido e na Nova Zelândia. Este índice (aqui disponível: https://cresh.org.uk/cresh-themes/environmental-deprivation/pt-medix/) inclui um total de oito variáveis (poluição do ar – PM10, NO2 e CO; temperatura média; proximidade a indústrias poluentes; cobertura verde; e poluição da água – trialometanos e nitratos) e divide os municípios em seis classes de decrescente qualidade ambiental, tendo-se mostrado fortemente associado com a mortalidade geral e mortalidade por cancro no nosso país [7].

De forma a avaliar se existe justiça ambiental em Portugal estudou-se a associação entre o índice previamente descrito e a versão portuguesa do índice europeu de privação socioeconómica (aqui disponível: https://figshare.com/s/3a4226d520df3b18cb71) [3]. Este último indicador resultou da soma ponderada de oito variáveis sociais e económicas disponíveis no último censo da habitação e população, de forma a que quanto maior o seu valor maior o nível de privação (mais desfavorecida a área geográfica). De seguida, calculou-se o valor médio da privação socioeconómica para cada uma das seis classes de qualidade ambiental e aplicou-se o teste estatístico ANOVA (Análise de variância) para avaliar a significância das diferenças encontradas entre as classes de qualidade ambiental. Em todos os cálculos, adoptou-se como área geográfica base o município.

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Figura 1 – Índice de privação socioeconómica de acordo com as classes de qualidade ambiental.

Como é bem evidente na Figura 1, existe uma relação linear, positiva e estatisticamente significativa (p<0,001) entre a privação ambiental e a privação socioeconómica. O valor médio do índice de privação aumenta à medida que a qualidade ambiental diminui. Por outras palavras, quanto maior privação socioeconómica nos municípios pior é também a sua qualidade ambiental.

Assim, retomando a questão do título deste artigo, podemos afirmar que Não, com base nesta análise exploratória, não existe justiça ambiental no nosso país. Este resultado demonstra que o problema da injustiça ambiental está presente também no nosso país e não apenas em países anglo-saxónicos onde estas questões têm sido mais exploradas. Vários mecanismos poderão explicar esta sobreposição entre as geografias da pobreza e da qualidade ambiental, mecanismos esses que deverão ser escrutinados em investigações futuras.

Concluindo, esta investigação reforça a importância de considerar questões relacionadas com a justiça ambiental na compreensão das desigualdades socioeconómicas e geográficas em saúde e, além disso, demonstra de forma quantitativa que existe um gradiente socioeconómico na distribuição das caraterísticas ambientais prejudiciais à saúde humana, que tendem a concentrar-se nos municípios de Portugal Continental onde igualmente existe maior privação socioeconómica.

Referências bibliográficas

[1] EPA (2018). Environmental Justice. United States Environmental Protection Agency URL: https://www.epa.gov/environmentaljustice

[2] Green, M. A., Dorling, D., & Mitchell, R. (2018). Updating Edwin Chadwick’s seminal work on geographical inequalities by occupation. Social Science & Medicine, 197, pp. 59-62. doi:https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2017.11.055

[3] Ribeiro AI, Launay L, Guillaume E, Launoy G, Barros H (2018) The Portuguese version of the European Deprivation Index: Development and association with all-cause mortality. PLOS ONE 13(12): e0208320.  https://doi.org/10.1371/journal.pone.0208320

[4] Ribeiro, A. I., Krainski, E. T., Carvalho, M. S., Launoy, G., Pornet, C., & de Pina, M. d. F. (2018). Does community deprivation determine longevity after the age of 75? A cross-national analysis. International Journal of Public Health, 63(4), pp. 469-479. doi:10.1007/s00038-018-1081-y

[5] Rocha, V., Ribeiro, A. I., Severo, M., Barros, H., & Fraga, S. (2017). Neighbourhood socioeconomic deprivation and health-related quality of life: A multilevel analysis. PLoS One, 12(12), e0188736-e0188736. doi:10.1371/journal.pone.0188736

[6] Ribeiro, A. I. (2018). Desigualdades socioeconómicas na acessibilidade e qualidade dos espaços verdes urbanos na cidade do Porto. Barómetro Social. Ambiente, Espaço e Território. URL: http://www.barometro.com.pt/2018/01/11/desigualdades-socioeconomicas-na-acessibilidade-e-qualidade-dos-espacos-verdes-urbanos-na-cidade-do-porto/

[7] Ribeiro, A. I., Pina, M. F., & Mitchell, R. (2015). Development of a measure of multiple physical environmental deprivation. After United Kingdom and New Zealand, Portugal. European Journal of Public Health, 25(4), pp. 610-617. doi:10.1093/eurpub/cku242

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