Syriza: apenas uma mudança semântica?

Dimensão analítica: Economia e Política

Título do artigo: Syriza: apenas uma mudança semântica?

Autora: Patrícia Fernandes

Filiação institucional: Universidade do Minho

E-mail: patricia_fernandes_slb@hotmail.com

Palavras-chave: Syriza, poder da linguagem, austeridade, mudança.

Com a vitória nas eleições gregas de 25 de janeiro adensaram-se as expectativas do que poderia fazer o partido Syriza no mundo da política real. Esse jogo de expectativas está para lá do tradicional enquadramento esquerda/direita, podendo antes ser lido a partir da distinção entre aqueles que consideram não haver alternativa à aplicação de políticas de austeridade e aqueles que se posicionam contra aquelas políticas ou, pelo menos, contra a forma como têm sido aplicadas. Para estes, a vitória do Syriza foi recebida como o surgimento de uma alternativa e a possibilidade de mudar o tabuleiro político na União Europeia.

A este entusiasmo inicial seguiu-se, contudo, algum resfriamento ou mesmo desilusão à medida que as sucessivas reuniões do Eurogrupo foram dando pouco espaço aos membros do novo governo grego para escapar ao quadro político-económico pré-estabelecido. Já para aqueles que defendem que não há alternativa à austeridade, o gaúdio foi generalizado: finalmente o Syriza batia de frente com a realidade, descia com os pés à terra, percebia que as ideias podem ser muito interessantes na teoria mas que no mundo real têm de se sujeitar às regras do mercado, ao modo como as coisas funcionam, à verdadeira realidade que está para lá dos utopismos de uma esquerda radical. Em especial, tem sido recorrentemente evocado que a única mudança que o Syriza conseguiu foi uma mudança semântica: chamar “instituições” à “troika”, dizer “acordo” em vez de “programa”, substituir “credores” por “parceiros” ou falar em “condições” em vez de “austeridade”.

Esta acusação desconsidera, contudo, a importância do papel da linguagem, designadamente o modo como não só a gramática imposta pela nossa língua materna, mas também as palavras e as expressões que usamos, assumem um poder determinante no nosso pensamento. E neste domínio é incontornável a referência a Victor Klemperer que, nos estudos que realizou durante o regime nazi, chamou precisamente a atenção para o poder opressivo da linguagem e o uso que os regimes políticos podem fazer dele.

O nazismo introduziu-se no sangue e carne das massas através de palavras isoladas, formas de falar, formas de frases, impostas por milhões de repetições e que foram absorvidas de forma mecânica e inconsciente. [1]

Mas podemos recuar até ao século XIX para encontrar na tradição Herder-Hamann-Humboldt a ideia de que não há pensamento sem linguagem e que nessa medida aquele é determinado por esta. É assim que Humboldt afirma: “O homem vive com os objetos da maneira como a sua língua lhos apresenta.” [2] Neste sentido, a língua materna surge como força opressora – impõe-se ao nosso pensamento, impondo uma forma de pensar. E esta tradição chega-nos ainda hoje pela mão de vários autores que notaram e refletiram precisamente sobre esse poder da língua e da linguagem. [3]

Ora, a par deste reconhecimento do poder da linguagem é possível encontrar um espaço de liberdade do indivíduo, que passa pela resistência ao discurso de opressão através da modificação da própria linguagem, das expressões ou das palavras usadas. É nesta liberdade que ainda resta ao indivíduo, de se esquivar à imposição dos discursos, que poderemos encontrar espaço para a conceção de alternativas. E foi sempre isto que poetas e pensadores fizeram: redescreveram, para usar a expressão de Richard Rorty – como Galileu ou Newton, que apresentaram descrições alternativas às descrições comunitariamente aceites na altura, fazendo uso de novas palavras e expressões.

Como pensar esta possibilidade imensa da redescrição – esta capacidade libertária do indivíduo face ao poder da linguagem – no domínio do político?

Este poder de resistência parece-me especialmente relevante face ao contexto atual da própria sociedade portuguesa, dominado pela ideia-chave de que “não existe alternativa” às políticas de austeridade. [4] Este discurso, a que poderemos chamar austeritário, tem fabricado o consentimento das pessoas [5] usando precisamente expressões que fazem despertar no nosso “dicionário subconsciente” [6] uma atitude de resignação. É nesse sentido que se fala de “resgate” ou “ajuda” da troika quando efetivamente se trata de um empréstimo, se diz que “andamos a viver acima das nossas possibilidades” quando o problema da crise das dívidas soberanas tem causas muito mais complexas, ou se afirma que “o desemprego é uma oportunidade para mudar de vida” perante o desespero concreto daqueles que perdem o seu emprego.

O que nos resta quando chegamos aqui é precisamente revoltarmo-nos contra a linguagem utilizada – assumirmos que somos por ela condicionados e resistirmos em termos que se assemelharão a uma luta entre discursos. Ora, é precisamente isto que os elementos do governo grego têm tentado fazer: conscientes de que nos encontramos reféns da linguagem do sistema, sabem que teremos de encontrar fora do sistema, fora da linguagem do poder, a capacidade de articularmos as nossas reivindicações, introduzindo um novo vocabulário final no domínio público. [7]

Não pretendo aqui defender que isso é suficiente – de que bastará mudarmos as palavras para mudarmos a realidade política. Mas rejeitar a importância de tal mudança é permanecer preso às alternativas – ou falta delas – que temos. Só dispondo de uma nova linguagem nos será permitido repensar a situação atual e articular novas alternativas.

 

Notas:

[1] Klemperer, Victor (1947), LTI. Notizbuch eines Philologen, Berlin: Aufbau-Verlag, p. 29 (tradução minha).

[2] Humboldt, Wilhelm von, GS, VI, 180 (tradução de Bernhard Sylla).

[3] A lista seria extensa – destacaremos aqui Martin Heidegger, Jacques Derrida, Giorgio Agamben ou Roland Barthes.

[4] Contudo, se estamos no domínio do político têm de existir alternativas – as decisões políticas são isso mesmo, escolhas entre diferentes hipóteses.

[5] Expressão de Noam Chomsky e Edward S. Herman na obra Manufacturing Consent, de 1988.

[6] Expressão usada por Hélia Correia no artigo «Com respeito às palavras», in Público – Life&Style, 17 de janeiro de 2014.

[7] Como diz Agamben: “O que tento fazer não é simplesmente recorrer à tradição da esquerda. Não porque se trata de algo superado, mas porque considero que é necessária uma grande mudança semântica, sem a qual perderemos. É impossível derrotar um poder se não se compreender a lógica.” Em entrevista a Doppiozero e disponível em URL [Consult. 12 de abril de 2015]: http://www.doppiozero.com/materiali/interviste/giorgio-agamben-la-democrazia-%C3%A8-un-concetto-ambiguo (tradução minha).

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