O depósito do Estado e o estado do Depósito

Dimensão analítica: Cultura e Artes

Título do artigo: O depósito do Estado e o estado do Depósito

Autora: Sónia Passos

Filiação institucional: ESMAE, IPP

E-mail: soniapassos@esmae-ipp.pt

Palavras-chave: Depósito legal, Estado, Política nacional

O Depósito Legal (DL) é uma disposição dos Estados que obriga os produtores de vários tipos de publicações a entregar um determinado número de exemplares a bibliotecas ou outras instituições designadas para o efeito. A principal finalidade assumida pelo DL é a preservação do património cultural de uma nação. Trata-se de uma construção do Liberalismo, determinada em criar uma identidade e uma história legitimadora da existência das nações enquanto unidades políticas e geográficas distintivas.

Em Portugal, a seguir à Real Biblioteca da Corte (1796-98), actual Biblioteca Nacional, foi a Biblioteca Pública Municipal do Porto a segunda a usufruir do privilégio de DL, em 1833. A sua criação acontece, de resto, como agradecimento de D. Pedro IV à cidade pelo apoio nas lutas liberais. Ao longo dos séculos XIX e XX, outras bibliotecas receberam o mesmo benefício.

O decreto-lei que vigora hoje data de 1982 (sucede o de 1931) e identifica as seguintes instituições como beneficiárias: Biblioteca Nacional, Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa; Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra; Biblioteca Municipal de Lisboa; Biblioteca Pública Municipal do Porto; Biblioteca Pública e Distrital de Évora; Biblioteca Geral e Arquivo Histórico da Universidade do Minho; Biblioteca Popular de Lisboa; Biblioteca Municipal de Coimbra; Biblioteca de Macau; Biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro; Biblioteca Pública Municipal de Angra do Heroísmo; Biblioteca Pública Regional da Madeira.

São alvo de depósito obrigatório: livros, brochuras, revistas, jornais e outras publicações periódicas, separatas, atlas e cartas geográficas, mapas, quadros didácticos, gráficos estatísticos, plantas, planos, obras musicais impressas, programas de espectáculos, catálogos de exposições, bilhetes-postais ilustrados, selos, estampas, cartazes, gravuras, fonogramas e videogramas, obras cinematográficas, microformas e outras reproduções fotográficas, assim como as obras impressas no estrangeiro que tenham indicação do editor domiciliado em Portugal.

Os proprietários, gerentes ou equivalentes de tipografias, oficinas ou fábricas, seja qual for o processo reprográfico que utilizem e mesmo que imprimam ocasionalmente, devem entregar no Serviço do DL, a funcionar na BN, catorze exemplares de reprodução das obras definidas como objecto de depósito. No caso dos fonogramas e videogramas, a obrigação de proceder ao DL incumbe ao seu editor, e, no caso de obras cinematográficas, ao seu produtor.

Em 1993, no âmbito da transposição de directivas europeias e no sentido da protecção do património fílmico e audiovisual nacional, o Estado português atribuiu à Cinemateca Portuguesa / Museu do Cinema a incumbência da sua preservação, conservação e divulgação. Após 1982 o decreto não se alterou, nem se regulamentou, mas embora Macau deixou de receber DL e a Biblioteca Popular de Lisboa foi extinta por decreto em 2001.

As bibliotecas beneficiárias, não raro, consideram o depósito legal um ónus do qual não se podem eximir e que, por vezes, “desbaratam” incumprindo o previsto na lei.

Essas bibliotecas não têm estatuto especial no que diz respeito a gestão ou orçamento. São bibliotecas municipais, regionais, centrais, ou de universidades. Não existe uma rede ou uma plataforma comum que apoie a sua acção patrimonial, pois bem entendido, tratam-se de bibliotecas de tipo nacional, uma vez que assumem responsabilidades de conservação e preservação.

A Biblioteca Pública de Braga (tutela pela Universidade do Minho) usa o DL como política de aquisições, repartindo as espécies documentais entre a Biblioteca Pública e a Biblioteca da Rede de Leitura Pública Lúcio Craveiro, disponibilizando-as para empréstimo domiciliário. A Biblioteca Pública de Évora (até 2007 sob a dependência do Arquivo Nacional Torre do Tombo, e desde na então esfera da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas) selecciona o material bibliográfico que considera relevante para usufruto do público, e o restante material deposita-o num silo. A cidade de Coimbra tem duas bibliotecas com DL: a da Universidade e a Municipal. No Porto, a Biblioteca Pública Municipal depende exclusivamente da autarquia e vive asfixiada pelo espaço que já não tem, apesar dos projectos de ampliação prometidos, estudados e desenhados.

Sabe-se que as editoras portuguesas se socorrem, cada vez mais, de impressores economicamente mais rentáveis sediados fora de Portugal – desvinculados da obrigação do DL. É ainda de considerar que publicações estrangeiras sobre Portugal ou sobre a cultura portuguesa raramente entram no espólio nacional, e que muito desse espólio é constituído por traduções estrangeiras.

De registar maior cuidado no facto de o acesso à colecção nacional constituir, por vezes, uma espécie de “via sacra”, o que no contexto destes constrangimentos e na ausência de uma estratégia política não será de estranhar. A divulgação considerada em decreto e o acesso ao património como direito não se fazem cumprir.

Em 2015, o impresso é apenas um entre tantos outros suportes de informação; a edição digital e electrónica ocupa uma parte significativa da produção científica e ficcional; os livros não são apenas livros, são livros-brinquedo ou híbridos de outras coisas; o multimédia já não é o jogo de tabuleiro apenas, ganhou outras formas e conteúdos; a memória actual da nação ignora um outro mundo do património documental.

A Associação de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas há muito que alertou a necessidade de rever o DL. No início deste século propôs uma nova redacção legal, mas que nunca foi discutida ou analisada por “quem de direito”. Acabou por se desvincular da questão, e preocupar-se antes com a criação de valor dos serviços e os ecossistemas de informação – o património é uma reivindicação do passado.

O DL constitui património nacional, é um bem público e é uma questão de Estado. O acesso ao património documental é um direito cultural, um direito dos cidadãos. A condição do DL hoje é a ausência – de uma estratégia, de uma política, de um projecto global, integrado e sustentável que permita perpetuar a memória do Estado para além das gerações que foram sendo responsáveis pela sua produção. A forma como um Estado cuida do seu património documental e como promove a sua acessibilidade traduz a relação que mantem com a sua História e com a projecção do seu futuro como nação num mundo global. Urge, pois trazer o depósito do Estado para a discussão pública, e evitar um Estado de depósito.

.

.

Esta entrada foi publicada em Cultura, Artes e Públicos com as tags , , . ligação permanente.