Dimensão analítica: Cultura e Artes
Título do artigo: Algumas questões em torno do conhecimento documental da actividade editorial e livreira
Autor: Nuno Medeiros
Filiação institucional: Instituto Politécnico de Lisboa (ESTeSL); Universidade Nova de Lisboa (CesNova)
E-mail: nuno.medeiros@fcsh.unl.pt
Palavras-chave: arquivos e espólios, editores e livreiros, património
No quadro de uma reflexão sobre o património decorrente da actividade cultural associada à elaboração e formulação da designada cultura escrita, sobretudo da que é tornada pública e que encontra nessa publicitação a sua razão de ser, os agentes profissionais ligados à produção e disseminação do impresso – e, cada vez mais, do impresso digital – surgem como objecto eles próprios de conhecimento. Entre tais agentes emergem os editores e livreiros como actores centrais na mediação e prescrição da hermenêutica social do mundo expressa no livro.
O desígnio de explorar as formas como essa cultura veiculada pelo livro é elaborada e re-elaborada tem enfrentado obstáculos empíricos de transposição difícil e mesmo impossível, traduzidos frequentemente em barreiras no acesso tanto a fontes documentais, bibliográficas e memorabília (placards publicitários, estantes, mobiliário diverso, máquinas e mesmo conjuntos arquitectónicos), como a dados estatísticos. Quanto ao contacto com – e consulta a – acervos documentais, não é difícil encontrar exemplos que ilustrem limitações e mesmo impossibilidades de acesso colocados por alguns detentores dos materiais arquivísticos a quem procure pesquisar. Essas dificuldades e carências, facilmente aferíveis por indagação sistemática no terreno e por testemunhos de livreiros e editores, referem-se ao estado de abandono, dispersão ou simples inexistência de espólios e acervos de organizações editoriais e livreiras que possibilitem empiricamente esse estudo.
A panorâmica dos espólios destes dois relevantes agentes de edificação e circulação da cultura impressa, o editor e o livreiro, apresenta-se em Portugal com muitas fragilidades, decorrendo de um conjunto de factores: uns, mais gerais e alinhados com o que acontece em termos gerais com os acervos empresariais, nomeadamente os editoriais e livreiros, noutras realidades nacionais, dada a pouca apetência dos guardiães da cultura escrita em guardar os seus arquivos e objectos ou em torná-los acessíveis; outros, explicados por atributos mais locais, como a ausência de espaços e tradições institucionais de preservação e estudos deste tipo de materiais relativos a este tipo de actividade.
Não é que se possa afirmar que os editores e livreiros não se preocupem com a memória. Existe efectivamente, sobretudo internacionalmente, uma profusão de livros sobre editores e casas editoriais e até livrarias patrocinados e promovidos pelos próprios ou por descendentes seus. Acontece que uma parte significativa destas publicações é de carácter auto-elogioso ou ego-histórico, constituindo um depósito muito interessante sobre as dimensões de composição de memória e de auto-representação dos livreiros e editores, e não tanto uma fonte passível de ter tomada como única e fiável em si mesma.
Sublinhe-se que o assunto é complexo e irredutível à atribuição de culpa ou à responsabilização automática deste ou daquele actor institucional ou empresarial específico ou tomado na sua generalidade. Atente-se a um cortejo de questões resultantes dos próprios processos quotidianos de constituição de agregados documentais quando se pensa em arquivos editoriais (e, por extensão, livreiros), especialmente num contexto de desmaterialização crescente das trocas de comunicação e de presença cada vez maior de processos informáticos na produção de documentos. Com a quantidade de correspondência recebida e documentação produzida, o que se preserva no arquivo e o que se destrói? E o que é insusceptível de constar de um arquivo, como os telefonemas a tornarem-se a regra, substituindo o intercâmbio epistolar anterior, pelo menos até ao advento da correspondência electrónica? Ou seja, como desenhar e preencher um arquivo histórico? Como escolher a documentação de “mérito” e aquela destinada à efemeridade? Estes problemas, de clara imbricação classificativa e selectiva (que estará sempre vinculada a processos de hierarquização simbólica e de legitimação de tipos e fontes de informação), não são desprezíveis, estando ligados a variáveis administrativas, de gestão e de categorização (logo, de opção) relacionadas com a possibilidade de reconstruir a vida e a estrutura das entidades livreiras e editoriais nos seus processos de trabalho e de prescrição cultural.
As próprias tradições de salvaguarda, quando existem, não são idênticas, e o assunto tem sido objecto de discussão, tanto no universo anglo-saxónico (especialmente nos Estados Unidos da América, onde é possível encontrar um número já razoável de arquivos históricos de editores, mas muito menos de livreiros, bem depositados essencialmente em universidades e fundações), como em países da Europa continental (avultando casos significativos como o francês IMEC, Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine, ou o italiano Fondazione Arnoldo e Alberto Mondadori) ou mesmo da América Latina, com destaque para algumas experiências brasileiras interessantes e com largas possibilidades de expansão.
Por outro lado, a própria natureza da actividade dos livreiros e, sobretudo, dos editores apresentava-se até há algum tempo – e amiudadamente ainda se apresenta – como um empecilho ao desiderato da compreensão do mundo do livro. As práticas editoriais, orientadas geneticamente para a disseminação do saber nas suas múltiplas emanações, traduzem-se paradoxalmente neste ponto fundamental em limitações objectivas ao conhecimento, tolhido por uma ética fortemente arraigada de segredo como alma do negócio, construindo assim o editor uma imagem de si baseada no faro e nas capacidades quase oraculares de previsão ou de configuração do gosto do público leitor e de descoberta do próximo êxito de vendas ou autor de referência. Daqui resulta uma prática opaca a todos quantos se aventurem a cartografar o universo editorial e livreiro.
Refira-se que actualmente, com a multiplicação de cursos de formação permanente e pós-graduada para editores, técnicos de edição e livreiros, o panorama internacional, mas também o português (apesar de todas as suas debilidades e atavismos estruturais), parecem começar a sofrer alterações cada vez mais indisfarçáveis – apesar de incertas nas suas consequências de médio e longo prazo – no sentido de uma certa abertura e transparência quanto a procedimentos e erudição. Este facto, associado a um contexto de empresarialização e concentração editorial e reconfiguração das cadeias e pontos de venda livreira (fisicamente ou na internet), poderá já estar a contribuir para uma mudança de uma certa ideologia corporativa da opacidade de fórmulas e métodos.
A evidente necessidade de salvaguarda de espólios e da sua transformação em arquivos organizados e consultáveis cujo conteúdo seja disponibilizado à consulta pública obriga à colocação de questões como estas. Trata-se de questões essenciais para a articulação do debate e da reflexão com a prática de defesa e de viabilização de fórmulas de preservação e, portanto, de patrimonialização de agregados documentais preciosos para o conhecimento dos modos como a actividade de publicar e fazer circular o livro contribuíram para as circunstâncias e recortes culturais das sociedades modernas.
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