O espaço marítimo na transição energética (in)injusta

Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território

Título do artigo: O espaço marítimo na transição energética (in)injusta

Autora: Joana Sá Couto

Filiação institucional: Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

E-mail: joana.sacouto@ics.ulisboa.pt; joanasclb@gmail.com

Palavras-chave: espaço marítimo, justiça, renováveis offshore.

Os oceanos têm um papel central na regulação do sistema terrestre, pela capacidade de absorver, reter e transportar, a energia transmitida pelo sol na forma de calor, com consequências relevantes para todo o sistema climático. Por outro lado, os oceanos são importantes para o armazenamento de carbono, e, atualmente, são considerados fundamentais para a mitigação das alterações climáticas, através da sua capacidade de produção de energia renovável.

Com o objetivo de alcançar a neutralidade carbónica em 2050, Portugal tem vindo a apostar em diferentes projetos de energias renováveis, em particular o grande solar, criando zonas de sacrifício que são justificados pelo Estado, de forma paradoxal, com o desenvolvimento de uma economia crescente, eficiente e verde, que, no entanto, apresenta incompatibilidades com a sustentabilidade dos ecossistemas [1]. O interesse crescente pelo espaço marítimo nas suas diferentes vertentes, mas em especial para a produção de energia eólica offshore, deve ser entendido no seu complexo contexto e analisado sem que essa lente critica seja confundida com uma negação da necessidade de descarbonização.

A consulta pública do Plano de Afetação para Energias Renováveis Offshore (PAER) aguarda análise das 139 participações, no portal Participa. Este foi o momento em que se abriu a possibilidade de participação a todas as partes interessadas, o que, ainda assim, é um sistema de participação com problemas claros. Atualmente, são várias as atividades com interesses no espaço marinho, para além da pesca, como as atividades marítimo-turísticas, o transporte marítimo e aquicultura. Estas tensões não são novas e, aliadas às políticas top-down e considerável carga burocrática, aumentam a incerteza inerente à pesca.  A estas tensões históricas vieram juntar-se as novas formas de utilização privativa do espaço marítimo, através de títulos (TUPEM) estabelecidos na Política de Ordenamento e de Gestão do Espaço Marítimo Nacional, de 2014, e previstos no Plano de Situação do Ordenamento do Espaço Marítimo (PSOEM). Estes títulos são formas de privatização de um recurso comum, englobando atividades desde a aquicultura, investigação científica e recursos energéticos. Admitindo a importância do compromisso pela conservação da natureza através da criação de mais Áreas Marinhas Protegidas, que foi antecipado para 2026, começamos a compreender o desenho complexo de interesses dos diferentes usos do espaço marítimo.

Num comunicado recente, a associação Zero identifica 5 questões prioritárias quanto a estas áreas protegidas, deixando ainda a nota do possível sacrifício de zonas para “energia, produtos agroalimentares, matérias-primas essenciais, turismo” [2]. Entende-se, que existe uma agenda de crescimento económico nas escolhas de transição energética. Como exemplo, as grandes centrais solares em espaços agrícolas, florestas ou zonas de montado (paisagem considerada património imaterial); ou a extração mineira em zonas de sistema agro-silvo-pastoril protegido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, e a intenção de atrair a indústria pesada que sustenta estas produções.

Na revisão do Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC 2030) está prevista a aposta no sector offshore, ancorada também na Estratégia para a Energia Renovável Offshore, cuja consulta pública se realizou em 2020. Apesar dos vários contributos que referem a importância de processos de consulta pública eficazes, a forma como o processo tem sido conduzido não tem permitido a participação igual de todas as partes interessadas.

O processo de consulta pública acontece numa fase posterior ao desenho do projeto, que deveria ser co construído com todas as partes interessadas, não apenas para uma maior aceitação de todos os envolvidos, mas por uma questão de justiça. As questões relativas aos mares devem considerar a pesca não apenas enquanto atividade económica, mas como uma aliada pelo profundo conhecimento local dos pescadores. Porém, pelos danos cumulativos que este sector historicamente tem sofrido, existe uma forte desconfiança das instituições, incrementada pelos sucessivos acontecimentos de falta de representação. É importante referir que a pesca em Portugal não é homogénea, mas é maioritariamente de pequena escala e costeira, com grande importância cultural, atravessando problemas de falta de mão de obra, devido à desvalorização da atividade e outros desafios políticos, sociais, económicos e ambientais. Estas comunidades vulneráveis deparam-se assim com o espaço do seu quotidiano, trabalho e vida, sacrificado também em nome do desenvolvimento de projetos com grande impacto nos ecossistemas marinhos (alterações nos padrões de vento com consequências no afloramento costeiro, degradação de habitats, ruído, entre outros), acompanhado da poluição das estruturas e da indústrias que procura promover, por 2GW provenientes de uma tecnologia ainda em desenvolvimento, implicando custos e incertezas dos seus impactos acrescidas.

Nas discussões sobre a transição energética, o mar tem ficado para trás. Sectores como o transporte marítimo e a pesca são especialmente difíceis de descarbonizar. Mas o interesse existe, até pelos elevados custos dos combustíveis fósseis para uma atividade sem rendimentos certos. Ainda assim, é importante valorizar o papel das comunidades na sustentabilidade, e refletir sobre os direitos humanos na conservação marinha [3].

A questão energética apresenta-se como mais uma forma de limitação do uso do espaço marítimo pelos pescadores, contribuindo para a desvalorização da classe. Trata-se de mais uma escolha política e económica que privilegia o crescimento da economia azul através da privatização de um recurso comum para outros setores em detrimento da atividade piscatória. Acrescentaria ainda que no que respeita a economia azul, a lógica de crescimento económico não é compatível com uma gestão sustentável dos recursos marinhos dos quais as comunidades piscatórias dependem. É importante refletir, tendo em conta todos os desafios que a atividade enfrenta, sobre o sacrifício do espaço marítimo e o seu impacto nas comunidades piscatórias, considerando que, como escrevia Raúl Brandão em 1923, “Toda a gente tem direito a ir ao mar – toda a gente tem direito à vida”.

Notas:

[1] Brás, O.R., Ferreira, V., & Carvalho, A. (2024). People of the sun: Local resistance and solar energy (in) justice in southern Portugal. Energy Research & Social Science, 113 (2024): 103529.

[2] ZERO. (2024). ZERO identifica 5 questões das áreas protegidas que devem ter resposta prioritária do novo Governo. Disponível em URL [Consult. 22 maio 2024]  https://zero.ong/noticias/zero-identifica-5-questoes-das-areas-protegidas-que-devem-ter-resposta-prioritaria-do-novo-governo/

[3] Smallhorn-West, Patrick; et. al. Why human rights matter for marine conservation, Frontiers in Marine Science, 10 (2023): 1089154.

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