Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública
Título do artigo: A felicidade como informação vital para a política e para a economia
Autor: Gabriel Leite Mota
Filiação institucional: Instituto Superior de Serviço Social do Porto e Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
E-mail: gmota@letras.up.pt
Palavras-chave: felicidade, política, economia.
Um dos paradigmas dominantes na ciência económica é a ideia de que o espaço informacional relevante para a análise económica é composto, apenas, pelos comportamentos observáveis dos indivíduos nas suas decisões económicas.
Este paradigma está ligado à teoria microeconómica, que faz uma interpretação restritiva do utilitarismo, considerando a utilidade apenas na sua acepção ordinal e recorrendo à metodologia das preferências reveladas (por oposição à utilidade cardinal e às preferências declaradas, ou mesmo a visões não utilitaristas [1]).
Foi, aliás, esse o esquema conceptual que a economia usou na viragem do séc. XIX para o séc. XX para se afirmar como ciência social positivista, por contraposição às demais (como a sociologia ou a psicologia) que aceitavam outros espaços informacionais para as suas análises, nomeadamente as informações subjectivas [2].
Essa escolha epistemológica gerou frutos reputacionais, promovendo a consolidação da economia como a única ciência social “a sério”. O uso da linguagem matemática, o foco na análise dos comportamentos humanos segundo a ideia de racionalidade, optimização e individualismo e a modelização da economia de mercado e do sistema de preços como mecanismo privilegiado de alocação de recursos e obtenção da eficiência completaram o círculo que consolida a ciência económica no seu estatuto institucional.
Porém, o que garantiu estatuto, diminuiu verdade. A opção por uma visão demasiado restritiva do utilitarismo, e as escolhas metodológicas feitas, limitaram profundamente a capacidade da ciência económica fazer uma análise correcta dos comportamentos económicos, prevê-los e tirar conclusões de política e bem-estar realistas.
É neste contexto de brecha epistemológica que a felicidade tem conseguido penetrar a ciência económica. Se é certo que continua a existir muita resistência a essa penetração por parte dos economistas mais arraigados ao paradigma dominante, são cada vez mais aqueles que percebem a relevância da felicidade para a análise económica.
Não por acaso, é nos ramos mais recentes da economia, como a economia comportamental, a economia experimental ou mesmo a neuroeconomia, que esta penetração é mais evidente. Mas também é perceptível na economia do bem-estar, na economia política, na economia pública, na economia do trabalho ou na política económica. Para já não falar da economia da felicidade, que existe enquanto agregador de estudos, mas não ainda enquanto ramo autonomizado da ciência económica.
O importante é o seguinte: olhar apenas para informação dita objectiva (como os preços, o PIB, as quantidades produzidas e consumidas, as escolhas de consumo, as horas trabalhadas, o tempo de lazer, etc.) e inferir, através de uma construção teórica com pressupostos simplistas e demasiado distorcedores da realidade, que os indivíduos e a sociedade estão a maximizar a utilidade (o bem-estar) é redutor e enganador.
Daniel Kahneman [3] ilustra bem esta situação com a distinção entre utilidade de decisão e utilidade experienciada. A primeira, diz respeito ao processo de tomada de decisão. A nossa mente analisa as opções disponíveis e faz uma escolha. Porém, essa é apenas uma parte de um processo mais complexo. É que, a seguir, vem a nossa vivência com a escolha feita. E dessa experiência, podem surgir sentimentos positivos ou negativos, tipicamente diversos daqueles que nos levaram a tomar a decisão inicial.
São, hoje, sobejamente conhecidas as limitações dos seres humanos em fazerem escolhas que, consistentemente, garantam o seu bem-estar, por heurísticas de decisão e vieses cognitivos [4], ou pelo simples facto de ser impossível prever e controlar o rumo dos acontecimentos da vida.
Daqui resulta que uma teoria comportamental que assuma que os seres humanos são maximizadores de bem-estar e que o único que os separa dessa maximização são as restrições orçamentais ou as fricções de mercado (como a económica dominante faz), é uma teoria errada, que tira conclusões de política incorretas. Neste contexto, a felicidade, enquanto bem-estar subjetivo, indagada diretamente às pessoas através de questionários, tem-se revelado uma fonte de informação vital para a elucidação do verdadeiro bem-estar vivenciado pelas pessoas e existente nas sociedades [5], até porque muitos dos nossos comportamentos económicos não emergem de uma maximização da felicidade, antes de uma resposta a impulsos neuroquímicos que, além do mais, ainda estão calibrados para a vida pré-histórica, nunca para a vida pós revolução industrial.
Aliás, muitos dos paradoxos da modernidade têm aqui a sua origem: já mais gente morre de obesidade do que de fome (porque a abundância alimentar nos impele a comer mais do que é óptimo); há uma pandemia de falta de sono (porque metemos o dia na noite com a invenção da lâmpada e criamos um mundo demasiado complexo e imprevisível, que nos tira o sono); temos abundância material, mas subsistem elevadas desigualdades, agravam-se problemas de solidão e de congestionamentos urbanos e não se tem caminhado, no séc. XXI, para uma redução do tempo de trabalho e do aumento de lazer, como se fez no séc. XX.
Importa, então, dar liberdade de escolha às pessoas, perceber porque fazem as escolhas que fazem, mas perscrutar também como se vão sentindo com as escolhas que fizeram, com a vida que levam. Importa perceber que não há escolhas verdadeiramente livres, isto é, as nossas escolhas são sempre o resultado das influências externas e da forma como processamos essas influências. Paradigmaticamente, a teoria por detrás do nudging percebe bem isso, tentando actuar nos contextos decisórios para que os nossos vieses possam ser utilizados em prol do nosso bem-estar sustentado [6].
Ou seja, a felicidade, enquanto espaço informacional, é vital para que os decisores políticos e económicos possam tomar decisões acertadas. Só assim, conseguiremos ter políticas públicas e privadas que promovam, verdadeira e sustentadamente o bem-estar da humanidade.
Pensando no caso português, a não utilização da informação sobre o bem-estar subjectivo tem implicações claras para o desenho das políticas públicas, em particular as económicas. É que, à luz de estudos sobre a felicidade das nações [7], Portugal aparece com uma classificação abaixo do que o seu PIB deixaria adivinhar. E as razões são perscrutáveis: o baixo capital social, a falta de confiança nas instituições ou a experiência de poucas emoções positivas e bastantes negativas. Por isso, um foco apenas no crescimento económico não bastará para projectar Portugal para patamares mais elevados de bem-estar.
Notas:
[1] Sen, A. & Williams, B. (eds.) (1982). Utilitarianism and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press.
[2] Bruni, L. & Sugden, R. (2007). The road not taken: how psychology was removed from economics, and how it might be brought back. The Economic Journal, Volume 117, Issue 516, Pages 146-173.
[3] Kahneman, D., Wakker, P.P. & Sarin, R. (1997). Back to Bentham? Explorations of Experienced Utility. The Quarterly Journal of Economics, Volume 112, Issue 2, Pages 375–406.
[4] Kahneman, D. (2011). Thinking, Fast and Slow. Farrar, Straus and Giroux – MacMillan.
[5] Kaiser, C. & Oswald, A. (2022). The scientific value of numerical measures of human feelings. Proceedings of the National Academy of Sciences, Volume 119, No. 42, https://doi.org/10.1073/pnas.2210412119.
[6] Thaler, R.H. & Sunstein, C.R. (2021). Nudge: The Final Edition. Penguin Books.
[7] Helliwell, J. F., Layard, R., Sachs, J.D.. De Neve, J.-E., Aknin, L. B., & Wang, S. (eds.). (2024). World Happiness Report 2024. University of Oxford: Wellbeing Research Centre. ISBN 978-1-7348080-7-0
.
.