Adaptação aos riscos ambientais: a sociologia como ciência da estratificação e das vulnerabilidades sociais

Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território

Título do artigo: Adaptação aos riscos ambientais: a sociologia como ciência da estratificação e das vulnerabilidades sociais

Autor: João Lutas Craveiro

Filiação institucional: Laboratório Nacional de Engenharia Civil (Núcleo de Estudos Urbanos e Territoriais)

E-mail: jcraveiro@lnec.pt

Palavras-chave: vulnerabilidade, estratificação, mudança social.

Atendendo à exposição das comunidades humanas aos riscos ambientais de diversa natureza e intensidade disruptiva, num contexto de maior imprevisibilidade, as exigências que se colocam à sociologia não podem comprometer a sua primeva e essencial vocação para o estudo das desigualdades e da estratificação sociais. Com efeito, a análise dos processos de mudança social e as formas de estratificação social marcam de forma indelével os primeiros estudos da sociologia e vinculam o carácter da sua análise: desde os opúsculos de Augusto Comte à Divisão do Trabalho Social de Émile Durkheim ou às obras comprometidas de Karl Marx impõe-se uma visão objetivista sobre a evolução das sociedades e uma interpretação dialética dos processos de mudança social [1]. Metodologicamente saliente-se, aliás, os estudos pioneiros de Frederick Engels, curiosamente quase sempre alienado das referências sobre sociologia e, mesmo, de uma ecologia humana. Este desenvolveu uma apurada epidemiologia dos impactes da poluição ambiental, relacionando condições de trabalho e de saúde humana, tendo recorrido a entrevistas locais e a diversa documentação reunida sobre os bairros operários e a distribuição social das doenças [2].

O contributo da sociologia deve ser, como então, o estudo das desigualdades e da estratificação por condições sociais e ambientais, no âmbito da exposição humana a agressões naturais ou induzidas. Esta desigual distribuição dos males, que Ulrich Beck denunciava [3], solicita que a sociologia se torne a ciência com consciência. Refira-se, a propósito e fazendo justiça à ciência que hoje se faz (ainda) em Portugal, que nos últimos programas de financiamento para estudos europeus, de que o Horizon Europe (2021-2027) é um exemplo, o apelo à inclusão das ciências sociais e humanidades tem-se intensificado, no pressuposto (nem sempre avaliado se efetivo) que o envolvimento das populações constitui um requisito essencial para a construção de sociedades mais resilientes.

O Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) tem, aliás, desenvolvido vários projetos de investigação que, desde cedo, acolheram uma relação estreita entre as ciências sociais, as engenharias e as ciências naturais, no sentido da caracterização das condições de segurança de grandes infraestruturas de ambiente, ou mesmo sobre comportamentos de risco de incêndio em meio rural, tendo sido o LNEC pioneiro nos estudos de uma sociologia do ambiente através do seu já extinto Grupo de Ecologia Social [4].

Mais recentemente, e já no âmbito do Programa Horizon, o projeto C2IMPRESS [5], intitulado Co-Creative Improved Understanding and Awareness of Multi-Hazard Risks for Disaster Resilient Society (2022-2025), desenvolve parcerias entre os setores público e privado e organizações da sociedade civil (de índole cultural, desportivo e associativo) para a promoção de um conhecimento partilhado, sob a construção de um plano de ação face a cenários de risco, espelhando-se uma visão sistémica na relação com os riscos ambientais (nas fases de pré-desastre, emergência e pós-desastre). Este plano de ação resulta não apenas de um mapeamento colaborativo sobre a localização dos riscos e os seus impactes, como compromete as partes a uma ação coletiva que, independente das vontades políticas regionais, pode representar um sinal, ainda que ténue, de emancipação cívica. A contribuição da sociologia desenvolveu-se na descrição dos territórios envolvidos, sob uma bateria de mais de uma centena de indicadores de vulnerabilidade e de capacidade de resposta, envolvendo ainda um conjunto de entrevistas e questionários, assim como o desenvolvimento de outros mecanismos de participação comunitária. Seguindo-se uma linha sociológica fundamentada na caracterização das populações, territórios e atividades, na senda de uma ciência das vulnerabilidades [6], o estudo discrimina e localiza os grupos sociais e as suas atividades, as infraestruturas críticas e os recursos de ação. Contudo, os processos de decisão e as hierarquias dos poderes legalmente competentes não são facilmente permeáveis a recomendações produzidas fora do âmbito dos procedimentos já previamente admitidos.

A sociologia e, de modo geral, as ciências sociais e as humanidades parecem estar sujeitas a uma certa perda da reflexividade científica, apesar da sua maior inclusão em grandes projetos europeus financiados. Esta perda da reflexividade ocorre provavelmente sob a compulsão a um mercado concorrencial de financiamento que favorece soluções tecnológicas, confinando muitas vezes a sociologia a um papel de animação sociocultural de workshops e à ilusória criação de comunidades de práticas sem qualquer relevância ou influência efetiva face aos processos rigidamente hierarquizados de decisão.

A perda da reflexividade social, já debatida em um outro lugar e sede própria [7], tem que ser combatida pela centralidade das questões sobre a estratificação social das desigualdades e pela afirmação disciplinar dos métodos clássicos da sociologia, sem se deixar de atender à multiplicação de novos contextos de interdisciplinaridade e, especialmente, à convocação da participação das partes interessadas (stakeholders) que conquiste espaços de interação cívica (como em assembleias de cidadãos) muito além da realização de workshops.

Alienando-se considerações sobre a estratificação social das desigualdades e sem conceber o território como um campo topológico de relações de poder, dificilmente a sociologia conservará a sua autonomia científica e dignidade ética de análise, diluindo-se na realização de workshops que mais não conduzem que a uma assunção passiva de um estado permanente de alerta contra ameaças múltiplas e à necessidade (a componente admitida de proatividade face à ductilidade da sociedade civil) de se promover a aceitação social de novas soluções tecnológicas.

Notas:

[1] Aron, R. (1995). Tratado de Sociologia. Porto, Edições Asa, Porto [1º edição].

[2] Clark, B. & Foster, J.B. (2006). The environmental conditions of the working class; an introduction to selections from Frederick Engels’s The Condition of the Working Class in England in 1844. Organization & Environment, Vol. 19, No. 3, September: 375-388

[3} Beck, U. (1992). Risk Society: towards a new modernity. London, Sage.

[4] Machado, F.L. (2017). Meio século de investigação sociológica em Portugal: uma interpretação empiricamente ilustrada. Sociologia: Revista Da Faculdade De Letras Da Universidade Do Porto19: 310-318. Obtido de https://ojs.letras.up.pt/index.php/Sociologia/article/view/2339

[5] O projeto C2IMPRESS é financiado pelo Programa da União Europeia Horizon Europe sob o Grant agreement No. 101074004, reunindo casos de estudo em Portugal, Grécia, Espanha e Turquia, sendo coordenado pela Universidade de Istambul (Turquia): https://www.c2impress.com

[6] Cutter, S., Boruff, B., & Shirley, L. (2003). Social Vulnerability to Environmental Hazards. Social Science Quarterly, Vol. 84, No. 2: 242-261:  https://doi.org/10.1111/1540-6237.8402002

[7] Craveiro, J.L. (2023). Prevenção de riscos ambientais – o papel da sociologia. Sociologia, riscos e avaliação de impactos. Ciclo de debates, Associação Portuguesa de Sociologia, Secção Ambiente e Sociedade, 13 de dezembro de 2023:  DOI: 10.13140/RG.2.2.22081.12640

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