Da vida ocupada à grande demissão: debater os padrões de bem-estar nas sociedades atuais

Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública

Título do artigo: Da vida ocupada à grande demissão: debater os padrões de bem-estar nas sociedades atuais

Autora: Margarida Martins Barroso

Filiação institucional: CIES, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

E-mail: margarida.barroso@iscte-iul.pt

Palavras-chave: qualidade de vida, vida ocupada, grande demissão.

Na última década tem vindo a popularizar-se o termo “síndrome da vida ocupada”, para fazer referência à sobreocupação que caracteriza o quotidiano de muitas pessoas nas sociedades atuais. Estima-se que o conceito – que não tem qualquer atribuição patológica, nem é reconhecido como doença – tenha sido identificado e cunhado por um grupo de investigação clínica escocês, no início dos anos 2010, para interpretar o aumento dos problemas de concentração e de memória na população ativa, como resultado de uma vida hiperestimulada e com atividade excessiva[1].

Os processos de intensificação do trabalho, os sistemas “multitarefa” de organização das funções individuais, a hiperconectividade, e as necessidades de conciliação da vida profissional com outras esferas da vida humana, são fatores que confluem para a sobreocupação quotidiana e que podem estar na origem de sentimentos de incapacidade, insuficiência, ineficácia, desinteresse ou alienação. Mas mais do que uma determinação externa imposta pelas organizações de trabalho, a “vida ocupada” pode também resultar da ação individual, mais ou menos intencional, manifesta na necessidade de preencher os tempos livres, ou com mais trabalho pago, ou com mais trabalho não pago, ou com atividades de natureza variada que não pressuponham descanso.

Em 2005, Jonathan Gershuny [2] argumentava que, nas sociedades atuais, ter uma vida ocupada se afirma como símbolo de elevado estatuto social, não só porque o tempo de quem detém o conhecimento, capital agora mais valorizado, vale mais do que o de quem não o possui, mas também porque as próprias atividades de lazer se intensificaram e mercantilizaram. Neste sentido, a sobreocupação quotidiana surge como um fenómeno socialmente aceite, e muitas vezes entendido como expressão de sucesso profissional, familiar e pessoal.

A pandemia por COVID-19 veio pôr em evidência alguns dos dilemas que se fazem sentir na experiência de uma “vida ocupada”. Por um lado, porque veio aumentar ainda mais a sobreocupação quotidiana de um conjunto significativo da população ativa, nomeadamente, de quem teve de acumular o trabalho produtivo remoto com o trabalho de cuidado e acompanhamento de crianças e outros/as dependentes, e com a organização da vida doméstica em condições mais desafiantes do que o habitual. Por outro lado, porque implicou a redução ou eliminação de algumas das atividades que concorrem para a ocupação quotidiana, gerando situações de inadequação e afetando as perceções de realização profissional e pessoal para um grupo também expressivo da população.

Em qualquer dos casos, a mudança forçada dos padrões de ocupação quotidiana criou condições para que se questionassem modelos vigentes de bem-estar e de qualidade de vida, sobretudo na esfera do trabalho.

Nos EUA, o aumento expressivo do número de despedimentos por iniciativa do/a trabalhador/a no período pós-pandémico estabeleceu as bases do debate em torno da Grande Demissão (termo proposto por Anthony Klotz [3]), enquanto potencial fenómeno revolucionador do atual paradigma de trabalho, por via da renúncia da insustentabilidade dos sistemas de trabalho intensivos, assentes no presencialismo, em condições de trabalho precárias, no desrespeito da família, saúde e vida privada de quem trabalha.

A evidência científica atual é ainda escassa para acomodar uma real transformação na forma de conceber o trabalho, o bem-estar, e a sua relação. Alguns estudos recentes deixam em aberto a possibilidade de estarmos a assistir a uma quebra nos padrões de conformidade com modelos de trabalho intensivos, já iniciada pelas gerações mais novas, e impulsionada pelos efeitos da pandemia (por exemplo, Elhefnawy, 2022) [4]. No entanto, a análise da evolução dos valores associados ao trabalho continua a evidenciar maiores diferenças de género, educação, classe social ou situação familiar, do que geracionais, na determinação daquilo que é mais ou menos valorizado num trabalho (Hadju e Sik, 2018; Williams, 2020) [5][6].

Sabe-se que a grande demissão se fez sentir sobretudo nos setores da tecnologia e da saúde, e que quem renuncia se encontra maioritariamente a meio da carreira profissional. Sabe-se também que o fenómeno não tem ainda expressão global. Em Portugal, país ainda caracterizado por níveis salariais baixos, por baixas qualificações, por taxas de desemprego muito permeáveis a choques económicos, mas também por horas de trabalho semanal superiores à média europeia (Eurostat, 2021) [7], a proporção de pessoas que mudou de emprego no período pós-pandémico situou-se abaixo dos 8% (INE, 2022) [8].

No rescaldo de uma conjuntura global que obrigou a colocar a saúde em primeiro plano, não deixa de ser pertinente perguntar em que medida a sobreocupação quotidiana é sustentável a médio ou longo prazo, e quem é que tem verdadeiro capital de renúncia e negociação de melhores condições de vida e de trabalho.

Notas:

[1] Scottish researchers to seek cure for forgetfulness (21 fevereiro 2011), BBC News. https://www.bbc.com/news/uk-scotland-12518407

[2] Gershuny, J. (2005). Busyness as the Badge of Honor for the New Superordinate Working Class. Social Research: An International Quarterly 72(2), 287-314. doi:10.1353/sor.2005.0026.

[3] Cohen, A. (10 maio 2021). How to Quit your Job in the Great Post-Pandemic Resignation Boom. Bloomberg News. https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-05-10/quit-your-job-how-to-resign-after-covid-pandemic#xj4y7vzkg.

[4] Elhefnawy, N. (2022). Contextualizing the Great Resignation (A Follow-Up to ‘Are Attitudes Toward Work Changing? A Note’). Disponível em: SSRN: https://ssrn.com/abstract=4003351 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.4003351

[5] Hadju, G. & Sik, E. (2018). Are the work values of the younger generations changing?, In O’Reilly, J., Leschke, J., Ortlieb, R., Seeleib-Keiser, M. e Villa, P. (eds), Youth Labor in Transition: Inequalities, mobilities and policy in Europe. Oxford Scholarship Online.

[6] Williams, G. (2020). Management Millennialism: Designing the New Generation of Employee. Work, Employment and Society34(3), 371–387. https://doi.org/10.1177/0950017019836891

[7] INE (2022). Estatísticas de fluxos entre estados do mercado de trabalho 2021. Disponível em: file:///C:/Users/marga/Downloads/09IE_Fluxos_2021.pdf.

[8] Eurostat (2021). Average number of actual weekly hours of work in the main job. Disponível em: https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=Hours_of_work_-_annual_statistics#Employed_people_by_length_of_the_average_working_week.

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