A Ciência Cidadã e as Ciências Sociais – notas para reflexão

Dimensão analítica: Educação e Ciência

Título do artigo: A Ciência Cidadã e as Ciências Sociais – notas para reflexão

Autora: Maria João Oliveira

Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP)

E-mail: mjoliveira@letras.up.pt

Palavras-chave: Ciência cidadã; Ciência social cidadã; Ciências sociais.

A Ciência Cidadã (CC) fundamenta-se na ideia de investigação que se desenvolve de forma inclusiva e democrática, mas não existe uma definição única sobre o conceito. Genericamente, ao contrário de práticas científicas mais tradicionais, a CC considera os participantes como agentes ativos que podem contribuir de diferentes formas para a sua concretização, sendo os projetos nesta área classificados de acordo com o nível de envolvimento dos cidadãos.

Com visibilidade crescente entre académicos e investigadores de todas as áreas científicas – de tal modo que há quem considere mesmo que esta abordagem se transformou num campo científico e de prática quase autónomo [1] –, é no seio das ciências naturais que a utilização da CC está claramente mais consolidada. À limitada prática da CC pelas ciências sociais e humanidades (SSH), documentada pela literatura internacional [2;3] mas também nacional [4;5], acresce o forte pendor interdisciplinar destas disciplinas, o que as torna menos visíveis e reconhecidas no âmbito de projetos das ciências naturais e biomédicas em que muitas vezes estão presentes [6]. Para além disso, a maioria dos projetos de CC permanece no nível mais baixo de envolvimento dos cidadãos, desconsiderando frequentemente quaisquer contribuições além das que se referem à recolha de dados [2].

Esta reduzida participação e visibilidade constitui o que aparenta ser um paradoxo, atendendo à longa tradição de participação que os cidadãos têm neste campo científico, nomeadamente em projetos de investigação-ação participativa; em nosso entender, esta circunstância contribui para acentuar a desvalorização social das SSH. O dilema entre “rigor e relevância” [7] parece persistir no meio académico sempre que se discute o envolvimento dos cidadãos na ciência. A este propósito, importa lembrar como, apesar da longa tradição em métodos participativos nas ciências sociais, estes ainda são frequentemente perspetivados como secundários, sendo a investigação-ação participativa (IAP) também muito associada a objetivos de mobilização de ação coletiva, mais do que de produção de conhecimento e desenvolvimento de teoria [8]. Por outro lado, não obstante o forte compromisso que a academia tem estabelecido com a política de ciência aberta, a transferência de conhecimento e a resposta a problemas sociais relevantes para as comunidades com que trabalham, a ciência tem-se mantido num ambiente altamente profissionalizado.

Ademais, ainda que os programas de financiamento incluam, cada vez mais, e de forma explícita, a referência a esta prática, com alusão direta ao potenciamento do impacto social dos projetos, questionamos a convergência entre os requisitos do desenvolvimento de processos participativos, que requerem aprendizagem (em sentido bidirecional), e as exigências da agenda científica das ciências sociais, muito comprometida com prazos e financiamentos curtos.

Importa, por isso, difundir a discussão em torno do que define a CC e, muito em particular, esclarecer sobre “ciência social cidadã” [8,9,10], destacando assim a especificidade da dimensão social no âmbito do debate sobre ciência cidadã e, em particular, o impacto e a aplicabilidade do conhecimento gerado para os cidadãos e para as ciências sociais. Importa, por outro lado, debater os desafios, mas também as oportunidades que a prática da CC aporta, nomeadamente em relação às práticas mais convencionais de investigação. Devemos perguntar-nos, como sugere Alves [11], “como” utilizar as metodologias participativas para exercer, de facto, CC e estimular a cultura científica? Ou pode a CC ser útil não apenas para fomentar a participação e alargar a cultura científica, mas, com efeito, desenvolver melhor ciência “fundamental”?

Estas e outras questões estarão em debate na conferência Pensar a Ciência Cidadã – Desafios e oportunidades para as Ciências Sociais, que terá lugar na FLUP, no dia 29 de setembro 2022, evento aberto a académicos/as, cidadãos/ãs cientistas e todos/as os/as interessados/as nestas questões [12].

Notas:

[1] Delicado, A.; Rowland, J.; Vengut-Climent, E.; Mendoza-Poudereux, I. & Gaston, E. (2022). Citizen consultations on science communication: A citizen science approach. Metode Science Studies Journal, 12, pp. 47–53. https://doi.org/10.7203/metode.12.17510

[2] Hecker, S.; Garbe, L. & Bonn, A. (2018). The European citizen science landscape – a snapshot. In S. Hecker, M. Haklay, A. Bowser, Z. Makuch, J. Vogel, & A. Bonn (eds.) – Citizen science. Innovation in open science, society and policy, London: UCL Press, pp. 190–200. https://doi.org/10.14324/111.9781787352339

[3] Heiss, R. & Matthes, J. (2017). Citizen science in the social sciences: a call for more evidence. GAIA – Ecological Perspectives for Science and Society, 26(1), pp. 22–26. https://doi.org/10.14512/gaia.26.1.7

[4] Campos, R.; Monteiro, J. & Carvalho, C. (2020). Engaged Citizen Social Science or the public participation in social science research. Journal of Science Communication 20(6), pp. A06. https://doi.org/10.22323/2.20060206

[5] Luís, C. (2021). Ciência Cidadã nas Ciências e nas Humanidades. In C. P. Nabais (org.), Processos Criativos nas Ciências e nas Artes: A Questão da Participação Pública, Porto: Edições Afrontamento, pp. 29-40.

[6] Tauginienė, L; Butkevičienė, E.; Vohland, K.; Heinisch, B.; Daskolia, M.; Suškevičs, M.; Portela, M.; Balázs, B., & Prūse, B. (2020). Citizen science in the social sciences and humanities: the power of interdisciplinarity. Palgrave Communications, 6, pp. 1-11. https://doi.org/10.1057/s41599-020-0471-y

[7] Argyris, C. & Schon, D. A. (1991). Participatory Action Research and Action Science Compared: A Commentary. In W. F. Whyte (Ed.) – Participatory action research, Newbury: Sage Publications, pp. 85-96.

[8] Albert, A.; Mayer, K.; Perelló, J.; Balázs, B., & Butkevičienė, E. (2021). Citizen Social Science: New and Established Approaches to Participation in Social Research. In K. Vohland K. et al. (eds.) – The Science of Citizen Science, Springer, Cham, pp. 119-138. https://doi.org/10.1007/978-3-030-58278-4_7

[9] Perelló, J. (2022). New knowledge environments: On the possibility of a citizen social science. Mètode Science Studies Journal, 12, pp. 24-31. https://doi.org/10.7203/metode.12.18136

[10] Purdam, K. (2014). Citizen social science and citizen data? Methodological and ethical challenges for social research. Current Sociology, 62(3), pp. 374–392. https://doi.org/10.1177/0011392114527997

[11] Alves, F. (2021). Investigação-Acção Participativa: Caixa de Pandora ou Ciência Transformativa?. In C. P. Nabais (org.) – Processos Criativos nas Ciências e nas Artes: A Questão da Participação Pública, Porto: Edições Afrontamento, pp. 41-54.

[12] Saber mais: https://isociologia.up.pt/eventos/pensar-ciencia-cidada-desafios-e-oportunidades-para-ciencias-sociais

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