Dimensão analítica: Cultura, Artes e Públicos
Título do artigo: Espaço, género e sexualidade: Uma etnografia urbana na noite do Porto
Autora: Alicia Fournier
Filiação institucional: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Mestrado em Sociologia
E-mail: alicia-mf@hotmail.fr
Palavras-chave: Lazer, cidade, queer.
Look around, everywhere you turn is heartache
It’s everywhere that you go
You try everything you can to escape
The pain of life that you know
When all else fails and you long to be
Something better than you are today
I know a place where you can get away
It’s called a dance floor
Madonna – Vogue (1990)
Morgana, Born this Way
Zoom, 1/02/2020
Fotografia por Alicia Fournier
Ballrooms, bairros gays, gay prides, drag shows: a festa parece estar inscrita na história da cultura LGBT. A noite gera um ambiente favorável a identidades não normativas, cuja visibilidade, expressão ou a própria possibilidade de existência são limitadas ou, por vezes, inexistentes durante o dia. É deste cruzamento entre a noite e o queer — aqui definido como o questionamento da relação aparentemente estável entre sexo, género, orientação e prática sexuais [1] — que nasceu a investigação sobre a experiência do clubbing das mulheres queer na cidade do Porto [2].
O Porto transformou-se muito nas últimas décadas com a aparição de uma vida urbana noturna ativa e mais democrática no periodo pós-revolução [3]. A noite passou a estar no spotlight com a abertura de bares e discotecas – que inicialmente não se situavam apenas no atual party district mas também em zonas como Matosinhos, a Foz e a Ribeira [3]. Novos usos da cidade e personagens surgiram com o desenvolvimento de novas cenas musicais e culturais e nas décadas de 80 e 90 abriram os primeiros espaços noturnos assumidamente gays [3].
A noite e os seus espaços de lazer constituiram-se como espaços-tempo de libertação, de expressão e de visibilização de corpos e identidades marginalizados no espaço diurno, nomeadamente através do seu carater liminar, entendida aqui no sentido de Turner, que permite escapar à influência da estrutura e das hierarquias [4]. A noite também possibilita a libertação de desejos constrangidos pelo controlo social e opera assim uma rutura com os papéis diurnos e normativos [3]. É nesta articulação entre liminaridade e libertação do controlo social diurno que se torna possível pensar a relação entre o lazer noturno e o queer.
Todavia, não podemos adotar uma postura de romantização da noite e do lazer noturno. Este não é indiferente ao contexto do capitalismo neoliberal e constitui uma esfera económica muito lucrativa. Apesar de proporcionar possibilidades emancipatórias, constitui também uma fonte de alienação e de opressão [3]. Um exemplo disto é o fenómeno chamado Pink Washing, que corresponde ao uso do rótulo LGBTQIA+ como uma estratégia de marketing para gerar lucro, explorando o poder de compra desta comunidade — o Pink Money — e esvaziando assim certos espaços e eventos da sua potencial dimensão política e transformadora.
Portanto, é crucial complexificar a conceção do lazer noturno e, mais especificamente, do lazer noturno LGBTQIA+. Existe uma tendência para pensar tais espaços como “guetos gays” [1], visão redutora e binária na medida em que divide os espaços entre gays e héteros, dificultando a compreensão de todos os processos de produção do espaço e das suas normas. A liberdade, a segurança e a possibilidade de expressões identitárias permitidas por tais espaços também devem ser complexificadas: por vezes, a visibilidade e a libertação de alguns têm por base a invisibilidade e opressão de outros. Por exemplo, os espaços comerciais gays costumam ser dominados por homens brancos, cis-género, sem deficiência, de classe média ou alta, o que pode resultar num ambiente hostil para outras partes da comunidade LGBTQIA+ como, por exemplo, as mulheres, as pessoas não-brancas, trans, com deficiência, ou de classe social mais baixa.
O lazer noturno é muito mais complexo do que um simples espaço-tempo livre e sem normas. No seu seio, espaço, género e sexualidade articulam-se de forma complexa, fazendo emergir várias questões. A identidade, as emoções e o corpo são questões particularmente presentes na noite. Por exemplo, podíamos perguntar: em que medida o corpo constitui um vetor de libertação e de expressão, nomeadamente através da dança? Como se experiencia o lazer noturno, emocionalmente e corporalmente, e quais são as ruturas e continuidades com o espaço urbano diurno? Como é que o espaço é sexualizado, de que forma as normas de género e de sexualidade são constituídas e recriadas? Quais são as diferentes dinâmicas de inclusão e exclusão, de libertação e de discriminação que se constituem no espaço?
Estas são algumas das questões que guiaram esta investigação sobre a experiência do clubbing entre mulheres queer na cidade do Porto, de onde surgiram outras pistas para uma reflexão. Outra questão indissociável da questão do lazer noturno é a do seu reverso: o lazer diurno, ponto que se tornou ainda mais relevante com o encerramento atual dos espaços noturnos. Se a cidade noturna permite uma certa liberdade devido à suspensão, em diversos graus, das normas de género e de sexualidade, o que podemos dizer do lazer diurno, isto é, das vivências LGBTQIA+ na cidade?
Há ainda muitos campos por investigar no que respeita a estas temáticas. Os estudos sobre a sexualidade são um campo ainda marginalizado na sociologia portuguesa [5]. Esta investigação procurou, para além de dar visibilidade a uma parte da comunidade LGBTQIA+ muitas vezes invisibilizada na academia, evidenciar a riqueza e as possibilidades de análise das temáticas queer que têm o potencial para se tornarem um campo de estudo rico interligado a outros e que merece libertar-se da hierarquização académica do conhecimento.
Notas:
[1] Browne, K.; LIM, J. (2009) – Geographies of Sexualities. Theory, Practices and Politics. London: Routledge.
[2] Etnografia urbana iniciada em 2019 no quadro da realização da tese de mestrado em Sociologia.
[3] Rodrigues, C. B. (2016), A Cidade Noctívaga: Ritmografia Urbana de um Party District na Cidade do Porto. Tese de doutoramento em Sociologia – Cidades e Culturas Urbanas, Coimbra, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
[4] Cabral, J. P. (2000), “A difusão do limiar: margens, hegemonias e contradições” Análise Social, 34 (153), 865-892.
[5] Santos, A. C. (2014), “Academia Without Walls? Multiple Belongings and the Implications of Feminist and LGBT/Queer Political Engagement”, in Yvette Taylor (org.) The Entrepreneurial University Engaging Publics, Intersecting Impacts. London: Palgrave Macmillan, pp.9-26.
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