Dimensão analítica: Cultura, Artes e Público
Título do artigo: Convite à Sociologia da Literatura
Autor: Igor Nolasco
Filiação institucional: Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), Mestrado em Sociologia
E-mail: ifpnolasco@hotmail.com
Palavras-chave: Arte, Literatura, Sociologia da literatura.
“Not long ago, after my last trip to Russia, I had a conversation with an American very eminent in the field of politics. I asked what he read, and he replied that he studied history, sociology, politics and law.”
“How about fiction – novels, plays poetry?” I asked.
“No,” he said, “I have never had time for them. There’s so much else I have to read.”
I said, “Sir, I have recently visited Russia for the third time and don’t know how well I understand Russians; but I do know that if I only read Russian history I could not have had the access to Russian thinking I have had from reading Dostoevsky, Tolstoy, Chekhov, Pushkin, Turgenev, Sholokhov, and Ehrenburg. History only recounts, with some inaccuracy, what they did. The fiction tells, or tries to tell, why they did it and what they felt and were like when they did it.”
-John Steinbeck [1]
Um dos possíveis campos de análise sociológica ainda pouco explorado é a sociologia da arte. Heinich [2] escreve que uma pesquisa italiana contabiliza que a arte é foco de apenas 0,5% de todos os trabalhos sociológicos (a literatura, portanto, representa apenas uma parte desta ínfima porcentagem). Há muitos entraves que reiteram essa escassez de produção, nomeadamente a grande subjetividade das obras de arte pode ser um dos fatores que torna a sua análise um grande desafio.
Em Portugal, a sociologia da literatura emergiu sob a forma de alguns artigos e teses. De notável menção é a tese de doutoramento de Avellar George [3] sobre o escritor Luiz Pacheco; este aborda sociologicamente o percurso de vida do escritor, as suas influências e o processo que o metamorfoseou em um “escritor maldito” no meio literário português. Esta tese conecta diversas teorias sociológicas da literatura com o conceito, a evolução e a produção social do “escritor maldito” em Portugal e, por fim, elucida as nuances na vida de Luiz Pacheco que o fizeram “maldito”. Também na esfera da sociologia da literatura portuguesa encontra-se o artigo “Representações do cigano na literatura juvenil portuguesa” [4] de Maria da Conceição Tomé; esta procura interpretar a forma em que a população cigana é representada na literatura juvenil portuguesa, bem como a repercussão desta representação na “construção social da realidade e a configuração de normas de comportamento social”[4] da sociedade portuguesa.
Mesmo que muitas vezes assumam um caráter “supra-real”, ao construir uma estrutura social com apenas alguns aspectos do todo, as obras literárias não tomam ou almejam tomar o espaço do mundo real, apenas o provocam, o incitam e o estimulam. É sabido, por exemplo, que os capitães de Areia de Jorge Amado [5] nunca de fato existiram, mas pode-se dizer que a situação precária das crianças de rua e a sua relação com a sociedade brasileira nunca foi tão bem descrita. Os pobres e simplórios trabalhadores americanos criados por Steinbeck em “As vinhas da Ira” [6] não são reais, mas a sua dor, os seus sonhos e as suas desilusões vibram e têm grande nitidez em todas as páginas. É nas páginas de Saramago (na obra “Levantado do Chão” [7]) que as dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas das classes populares portuguesas do século XX são expostas junto com seus sentimentos ao enfrentarem situações graves de exploração laboral, pobreza, fome e desigualdade social.
“O esforço no sentido de devolver vida aos autores e ao seu meio ambiente poderia ser o de um sociólogo e não faltam análises da arte e da literatura que se fixam como fim a reconstrução de uma realidade social suscetível de ser apreendida no visível, no sensível e no concreto da existência quotidiana. O sociólogo, entretanto, não visa dar a ver, ou a sentir, mas construir sistemas de relações inteligíveis capazes de darem conta e razão dos dados sensíveis.” [8]
O sociólogo Pierre Bourdieu tinha muito interesse pelo campo literário e defendia avidamente o seu estudo, pois nele acreditava estarem descritas as molas propulsoras da realidade social, ainda que de uma forma camuflada.
Uma das obras mais influentes na sociologia da literatura (que contribuiu devastadoramente para o reconhecimento da sociologia da literatura em Portugal e no mundo) é precisamente da autoria de Pierre Bourdieu. Em “As Regras da Arte” [8], Bourdieu constrói uma grandiosa e completa análise sociológica da literatura francesa do século XIX. Além de realizar uma análise sociológica da obra “Educação Sentimental” de Flaubert [9] e do campo literário francês, ele conecta as regras, os processos de validação e o conceito de arte com as estruturas sociais presentes nas sociedades modernas, criando assim uma teoria social inédita.
O autor assume que a valorização e consagração das obras de arte está estritamente relacionada com as condições sociais do artista, bem como a sua posição no campo e o seu capital social e artístico. O conceito de arte não é universal; é arte, na verdade, a obra que tem o reconhecimento daqueles que estão autorizados a reconhecer uma obra de arte como legítima.
O mundo literário, apesar de ser infinito e imortal, percorre um caminho de constante mudança e renovação; novos autores estão sempre em processo de consagração e esquecimento. O conceito de “legítimo”, portanto, altera-se com o tempo: uma vanguarda subversiva pode ser progressivamente legitimada, e aquilo que era considerado subversivo e ilegítimo, eventualmente torna-se cânone. A arte é, então, uma disputa de poder entre os agentes produtores. Trata-se, mais uma vez, de uma questão social desprovida de valor intrínseco e universal, mas com abundante valor político.
Através do estudo da literatura francesa do século XIX, Bourdieu conseguiu perceber e tecer as estruturas, tendências e relações entre os agentes produtores e receptores da arte na França, e, longe de desvalorizar ou “profanar” o glamour artístico (como defendem os adeptos da “arte pura”[8]), ele amplia e reforça a sua importância e singularidade.
De Camões até Gonçalo M. Tavares, Eça de Queiroz até Saramago, o que Portugal tem de anos de vida também tem de história e relevância literária. O sociólogo português, diante de tão meritório e especial contexto literário, precisa reivindicar o seu direito e espaço no mundo da literatura. Antigas ou novas, consagradas ou de vanguarda, as obras literárias são fontes ricas de conhecimento e merecem ser alvo de séria consideração para a pesquisa sociológica.
Notas
[1] Steinbeck, J. (2003). America and Americans and selected nonfiction. Penguin.
[2] Heinich, N. (2004). Sociologie de l’art. Éditions La Découverte.
[3] Avellar George, J. (2011). Maldição E Consagração No Meio Literário Português. Faculdade de ciências sociais e humanas da Faculdade Nova de Lisboa.
[4] Tomé, M. D. C. (2014). Representações do cigano na literatura juvenil portuguesa. Sociologia, (TEMATICO4), 117-132.
[5] Amado, J. (1937). Capitães da areia, romance. Os romances da Baía, 6.
[6] Steinbeck, J., Vinhaes, E., & Civita, V. (1963). As vinhas da ira. Livros do Brasil.
[7] Saramago, J. (2013). Levantado do chão: romance. Editora Companhia das Letras.
[8] Bourdieu, P. (1996). As regras da arte. Editora Companhia das Letras.
[9] Flaubert, G. (2016). A educação sentimental: história de um jovem. Nova Alexandria.
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