Planeamento urbano, saúde pública e mobilidade

Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território

Título do artigo: Planeamento urbano, saúde pública e mobilidade

Autora: Ana Isabel Ribeiro

Filiação institucional: EPIUNIT-Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP); Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP)

E-mail: ana.isabel.ribeiro@ispup.up.pt

Palavras-chave: saúde urbana, planeamento urbano, ordenamento do território.

O planeamento urbano é uma prática multidisciplinar destinada a melhorar o bem-estar de pessoas e comunidades através da criação de lugares mais equitativos, saudáveis, eficientes e atrativos. O planeamento urbano e a saúde pública compartilham um conjunto de missões e abordagens, designadamente o enfoque na melhoria do bem-estar humano e na avaliação das necessidades da população.

Foi durante o século XIX, com a revolução industrial, que o planeamento urbano e a saúde pública tiveram a necessidade de unir forças para prevenir a disseminação de doenças transmissíveis (ex: cólera, peste) através do saneamento e outras medidas de salubrização urbana, e ainda na proteção da população contra exposições industriais perigosas através da implementação de leis de zonamento urbano [1]. No final do século XX, após décadas de fragmentação nas suas áreas de atuação – a saúde pública devido ao grande enfoque biomédico e o planeamento urbano devido à abordagem meramente geográfica – estas duas áreas do saber voltam a reatar os seus laços no combate a um conjunto de problemas de ordem social e de saúde cuja resolução implica abordagens multissetoriais. Um desses problemas é a inatividade física e o papel da morfologia urbana enquanto potencial impulsor ou obstáculo para a mesma.

A morfologia urbana diz respeito à forma física das cidades, sendo comumente analisada sob três pontos de vista representados na Figura 1: o regime de ocupação do solo, o sistema de transporte e as características micro-ambientais [2]. O sistema de transporte incluí todas as infraestruturas – estradas, estações ferroviárias e terminais de autocarro e outros meios de transporte – que permitem estabelecer a ligação entre os lugares de uma cidade, determinando quão fácil é o uso de cada um dos meios de transporte (público, carro, bicicleta deslocação pedestre) nas deslocações. O regime de ocupação de solo refere-se à distribuição territorial das residências, comércio, serviços, espaços de lazer, entre outras categorias de uso do solo. A forma como estas atividades, ou usos do solo, estão distribuídas determina se as habitações estão perto dos empregos, dos locais de lazer, do comércio e dos serviços. Finalmente, as características micro-ambientais incluem aspetos como a presença ou ausência de sinais de deterioração, de iluminação ou de elementos decorativos, que podem moldar a forma como a população perceciona os lugares, influenciando, por exemplo, se uma dada paisagem urbana é considerada segura ou insegura, atrativa ou desagradável, vibrante ou desinteressante.

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Figura 1 – Componentes da morfologia urbana com efeitos na atividade física e saúde pública.

As cidades do passado eram densas e compactas, ou seja, os serviços e o comércio estavam localizados perto das residências, o que permitia à população deslocar-se a pé entre a casa e estes destinos. Porém, estas cidades altamente caminháveis da era industrial (séculos XVIII e XIX) trouxeram um conjunto de problemas – sobrelotação, poluição do ar e da água e epidemias – o que obrigou à criação de um conjunto de medidas urbanísticas que estabeleceram as bases estruturais das cidades descentralizadas. Nestas, existe uma separação física clara entre as residências e os serviços e um distanciamento entre edifícios, estando comumente associadas a processos de suburbanização e a uma maior dependência do uso do automóvel e outros transportes motorizados.

Mais recentemente, o Novo Urbanismo (‘New Urbanism’), um movimento urbanístico que surgiu nos anos 80, propôs uma visão oposta ao sugerir que seria possível estimular hábitos mais saudáveis e sustentáveis na população através da promoção de lugares mais caminháveis, como está patente na citação abaixo retirada da Carta do Novo Urbanismo:

“We advocate the restructuring of public policy and development practices to support the following principles: neighborhoods should be diverse in use and population; communities should be designed for the pedestrian and transit as well as the car; cities and towns should be shaped by physically defined and universally accessible public spaces and community institutions; urban places should be framed by architecture and landscape design that celebrate local history, climate, ecology, and building practice.” [3]

Assente no ideal de cidade saudável preconizado pelo Novo Urbanismo e com o objetivo de sumariar numa só medida o conjunto de aspetos da morfologia urbana que facilitam a deslocação pedestre, foi desenvolvido nos anos 2000s o índice de caminhabilidade (do inglês ‘walkability index’) [4]. Este índice tem na sua fórmula variáveis como a densidade de habitações, o nível de entropia (ou seja, grau de diversidade de usos do solo) e o grau de conetividade das ruas e permite classificar os lugares como mais ou menos ‘amigos’ da deslocação pedestre [5].

Em Portugal, em 2018, quisemos testar o valor preditivo desta medida. Após construirmos um índice de caminhabilidade para as subsecções estatísticas (unidades geográficas equivalentes a um quarteirão) da Área Metropolitana do Porto com base em diversas fontes de informação, cruzamos este recém-criado índice com uma variável retirada do Censo Geral da População e Habitação de 2011 que indicava se a população se deslocava a pé para o trabalho ou estabelecimento de ensino [6]. Os resultados obtidos estão bem patentes no gráfico abaixo (Figura 2) que mostra uma relação direta entre o nível de caminhabilidade dos lugares e a probabilidade da população se deslocar a pé. Indivíduos que residiam nos lugares mais caminháveis da Área Metropolitana do Porto apresentaram uma probabilidade 81% superior de se deslocarem a pé, quando comparados com os residentes nos lugares menos caminháveis.

Figura 2 – Associação entre o índice de caminhabilidade e a proporção de população residente que se desloca a pé entre a casa e o trabalho ou escola.

À semelhança do verificado em Portugal, um conjunto crescente de estudos [7] tem demonstrado que o índice de caminhabilidade é um importante preditor da atividade física e de transporte ativo, pelo que a criação de comunidades caminháveis parece ser uma ferramenta poderosa e efetiva na promoção da atividade física e da saúde a nível populacional.

Concluindo, a cidade (e a sua morfologia) é e sempre será uma questão de saúde pública. Seja relativa às questões da mobilidade descritas atrás ou mesmo ao controlo de epidemias (como a que enfrentamos atualmente [9]), a saúde da população, hoje altamente urbana, passa não apenas por ações tradicionalmente associadas ao setor da saúde, mas também por um conjunto de ações de planeamento urbano que minimizem riscos e promovam ambientes mais saudáveis.

Notas

[1] Kochtitzky, C. S.; Frumkin, H., Rodriguez, R.; Dannenberg, A. L.; Rayman, J., Rose, K.; … & Kanter, T. (2006), Urban planning and public health at CDC, MMWR supplements55(2), pp. 34-38.

[2] Frank, L.; Engelke, P.; Engelke, S. F. P.; & Schmid, T. (2003), Health and community design: The impact of the built environment on physical activity. Island Press.

[3] Congress for the New Urbanism. The Charter of the New Urbanism. Disponível em URL [6 de Março de 2020]: https://www.cnu.org/who-we-are/charter-new-urbanism

[4] Frank, L. D.; Schmid, T. L.; Sallis, J. F.; Chapman, J.; & Saelens, B. E. (2005), Linking objectively measured physical activity with objectively measured urban form: findings from SMARTRAQ, American journal of preventive medicine, 28(2), pp. 117-125.

[5] Frank, L. D.; Sallis, J. F.; Saelens, B. E.; Leary, L., Cain, K.; Conway, T. L.; & Hess, P. M. (2010), The development of a walkability index: application to the Neighborhood Quality of Life Study, British journal of sports medicine, 44(13), pp. 924-933.

[6] Ribeiro, A. I. & Hoffimann, E. (2018), Development of a Neighbourhood Walkability Index for Porto Metropolitan Area. How Strongly Is Walkability Associated with Walking for Transport?, International journal of environmental research and public health, 15(12), 2767.

[7] Hajna, S.; Ross, N. A.; Brazeau, A. S.; Bélisle, P.; Joseph, L.; & Dasgupta, K. (2015), Associations between neighbourhood walkability and daily steps in adults: a systematic review and meta-analysis, BMC public health, 15(1), 768.

[8] Klaus, I. (2020), Pandemics Are Also an Urban Planning Problem, City Lab. Disponível em URL [9 de Março de 2020]: https://www.citylab.com/design/2020/03/coronavirus-urban-planning-global-cities-infectious-disease/607603/

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