Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social
Título do artigo: O paraíso e o inferno da habitação em Portugal e a coconstrução de soluções
Autora: Raquel Ribeiro
Filiação institucional: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
E-mail: raquelribeiro@ces.uc.pt
Palavras-chave: habitação, financeirização, desigualdades sociais.
Longe vai o tempo em que o ser humano se abrigava em grutas e cavernas para se proteger das condições climatéricas hostis e dos predadores. Os desenvolvimentos tecnológicos no setor da construção possibilitaram uma enorme evolução no nível de conforto e segurança dos alojamentos desde esses tempos até à atualidade. Contudo, apesar dos avanços técnicos, determinantes socioeconómicos e territoriais ditam a existência de desigualdades abissais nas condições de conforto e segurança habitacional: Os grupos sociais mais vulneráveis, i.e. com menores rendimentos e em situações profissionais mais precárias, tendem a residir em alojamentos com um maior número de problemas, a terem encargos mais elevados com a habitação, a estarem menos satisfeitos com a sua habitação e a se depararem mais com uma permanência indesejada numa casa sem condições mínimas ou saída forçada por não renovação do contrato de arrendamento [1][2]. A habitação constitui assim um mecanismo de (re)produção de desigualdades sociais que se manifesta com especial incidência nos centros urbanos onde a pressão imobiliária é maior [3].
Em Portugal, o residual investimento público na promoção direta de habitação, décadas de políticas públicas de arrendamento desadequadas e ineficazes, conjugadas com a importância crescente dos motivos, mercados e instituições financeiras na provisão da habitação (impulsionada pelos apoios do Estado à compra de casa própria na década de 1990, e.g. crédito bonificado), propiciaram uma distribuição desequilibrada dos regimes de ocupação e o aumento das desigualdades na habitação entre proprietários e arrendatários. A ausência de um parque habitacional público capaz de dar resposta às necessidades da população mais carenciada; a degradação dos alojamentos cujas rendas sofreram congelamentos vs. o aumento exponencial dos custos dos novos contratos; bem como o aumento da vulnerabilidade das famílias às crises económico-financeiras por via do endividamento, são algumas das consequências nefastas mais visíveis [3][4].
É neste contexto que Portugal vê crescer a procura transnacional dirigida ao imobiliário nacional e a atuação de novos agentes financeiros, como os fundos imobiliários internacionais, caracterizando uma nova fase do processo de financeirização da habitação em Portugal [3]. Sobretudo nas cidades de Lisboa e Porto, à semelhança do que aconteceu (e acontece) noutras cidades (e.g. Barcelona, Londres), a habitação é cada vez mais uma “mercadoria” e um ativo financeiro, adquirida tendo em vista a obtenção de elevada rendibilidade, através do arrendamento de curta duração ou venda, relegando para segundo plano a habitação enquanto necessidade básica e direito humano fundamental [5], produzindo importantes impactos psicossociais [2][6].
Os discursos ideológicos que promovem um ideal de “sujeito investidor” [7] e a privatização e individualização do Estado Social [3] impulsionam um capitalismo neoliberal negligente ao “cuidado ao outro” e aos direitos sociais [8], abrindo caminho para um cinismo legal (“os fins justificam os meios”) e para o enfraquecimento da cooperação e da solidariedade social [6].
Nos centros históricos de Lisboa e Porto, enquanto os edifícios ganham nova cor e novo uso, proliferam os apartamentos de luxo e o país é promovido internacionalmente como um destino paradisíaco – o 7º entre os melhores lugares do mundo em 2019 para gozar a reforma – para uma percentagem cada vez maior de residentes, em especial os mais vulneráveis (pobres, idosos, precários, migrantes, arrendatários), “viver no centro” é cada vez mais uma impossibilidade ou um verdadeiro “inferno”. O aumento exponencial dos preços da habitação ultrapassa largamente a capacidade económica e o crescimento dos rendimentos das famílias; sucedem-se as oposições à renovação dos contratos de arrendamento e, simultaneamente, diminuem as ofertas de arrendamento de longa duração; as comunidades locais desmembram-se pelo êxodo dos residentes mais jovens, pela transformação do comércio local e do espaço urbano; aqueles cujo direito legal garante a sua possibilidade de permanência são com frequência alvo de estratégias de intimidação, coação ou violência por parte de investidores imobiliários menos escrupulosos, visando forçar a sua saída [6][9].
Se uma lógica de racionalidade económica dita que o investimento financeiro se dedique ao setor da habitação, na medida em que é aquele onde a rentabilidade é maior [3], todo o ser humano necessita de uma habitação, essencial à sobrevivência física e ao equilíbrio emocional e psicossocial [2]. As abissais desigualdades nas condições de habitabilidade, de acesso e segurança habitacional tornam urgente a ação. Urge salientar a dimensão da solidariedade social e da responsabilidade partilhada, que cabe a todos/as – Estado e instituições públicas, organizações da sociedade civil, indivíduos e suas famílias e agentes económicos e financeiros – na cocriação de soluções que respondam às necessidades dos diversos intervenientes de hoje tendo no horizonte as gerações futuras [6].
Se adotarmos uma ética de “cuidado ao outro” [8] na coconstrução, desenho, e implementação de medidas, o acesso efetivo para todas e cada pessoa a uma habitação condigna – essencial à inclusão e não discriminação, à igualdade e justiça social, essencial à vida humana – será possível!
Notas
[1] INE (2018), Reduziu-se a população que vive com sobrecarga de despesas em habitação, Disponível em URL [Consult. 01 Jan 2018]: <https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=315222979&DESTAQUEStema=55565&DESTAQUESmodo=2&xlang=pt>
[2] Ribeiro, Raquel (2019), A “casa” — Entre o sonho e a realidade, In Ana C. Santos (Coord.), A nova questão da habitação em Portugal: Uma abordagem de Economia Política. Coimbra: Actual Editora, pp. 197-232.
[3] Santos, Ana C. (Coord.) (2019), A nova questão da habitação em Portugal: Uma abordagem de Economia Política, Coimbra: Actual Editora, pp. 293-323.
[4] Guerra, Isabel (2011), “As políticas de habitação em Portugal: à procura de novos caminhos”, Cidades, Comunidades e Territórios, 22, pp. 41–68.
[5] Rolnik, Raquel (2013), “Late neoliberalism: The financialization of homeownership and housing rights”, International Journal of Urban and Regional Research, 37(3), pp. 1058-1066.
[6] Ribeiro, Raquel (em preparação), Financeirização da habitação em Portugal: Impactos psicossociais, desigualdades socio-territoriais e justiça social.
[7] Aitken, Rob (2007), Performing capital, New York: Palgrave.
[8] Pintasilgo, Maria de Lourdes (Coord.) (1998), Cuidar o futuro. Um programa radical para viver melhor, Lisboa: Trinova Editora.
[9] Gago, Ana & Cocola-Gant, Agustin (2019), “O alojamento local e a gentrificação turística em Alfama, Lisboa”, In Ana C. Santos (Coord.), A nova questão da habitação em Portugal: Uma abordagem de Economia Política, Coimbra: Actual Editora, pp. 143-170.
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