Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território
Título do artigo: Direito das crianças à cidade: entre a agenda e a agência
Autora: Inês Barbosa
Filiação institucional: membro integrado do ISUP e membro colaborador do CIEC
E-mail: inesbarbosa83@gmail.com
Palavras-chave: crianças, direitos, cidade.
As cidades são territórios profundamente complexos e desiguais, compostos por fronteiras visíveis e invisíveis. Viver no mesmo sítio não significa partilhar uma mesma realidade. Basta pensar numa cidade como o Porto, onde ilhas e bairros sociais se erguem lado a lado com moradias e condomínios de luxo; em que uns recebem abaixo do ordenado mínimo e outros usufruem dos melhores restaurantes; uns deslocam-se pela cidade em autocarros apinhados e outros resguardam-se dentro do seu automóvel privativo. Também as crianças que vivem nesses lugares têm experiências, quotidianos e socializações distintas, estabelecendo diferentes “geografias da infância”. É sobre elas que falaremos, sobre o seu direito à cidade [1].
Os dilemas que trazemos a debate omitem um conjunto de desigualdades e de circunstâncias críticas, nomeadamente, das crianças pobres a quem é negado o direito a condições básicas de vida; das crianças com limitações físicas ou cognitivas impedidas de usufruir plenamente dos espaços e equipamentos; das crianças ciganas e afrodescendentes vedadas no seu direito à habitação e direito à não discriminação, só para citar alguns exemplos.
Centramo-nos antes num grupo, em muitos sentidos, privilegiado: o das crianças de classe média urbana. São os filhos e filhas de uma geração que procura dar o melhor que tem aos seus descendentes: bens, recursos, oportunidades. E, por isso, a criança sai da escola e vai para o ATL (onde faz os trabalhos de casa); e depois vai para o karaté (porque o exercício físico é importante); a seguir para o inglês (que é um passaporte para o futuro); à sexta para o piano (sempre bom aprender um instrumento desde cedo); e ao fim-de-semana, o xadrez ou a robótica (com sorte temos um filho génio ou empreendedor). Não esquecendo, claro, as festas de anos e as festas de pijama, as explicações e a psicóloga, os espetáculos e as visitas ao museu.
Para cumprir com todos esses compromissos, o pai e mãe vão-se revezando para os levar de uma ilha à outra [2], numa acrobacia frenética que os atira para o sofá no final de um dia. Esta é a geração do banco de trás do carro [3], cuja experiência da cidade é, cada vez, mais acolchoada, desfragmentada e limitada no tempo, mediada pelo adulto e pelo carro que a transporta e confinada aos espaços “destinados” a ela. Brincar na rua é já um mito pertencente a outros tempos. Tempos em que a cidade não era este lugar perigoso, cheio de vícios e de estranhos [4]. Agora temos os parques infantis, onde mesmo aí, todos os seus pequenos movimentos são acompanhados de perto, não vá o miúdo tropeçar no piso de borracha ou perder-se aquele momento fotogénico à saída do escorrega.
Neste processo, vivem-se várias tensões que põe em causa os seus direitos: entre a criança-produto e a criança produtiva; a agenda da criança e a sua agência e entre a proteção/provisão e a participação. A criança é produto porque consome e o mercado tem-se virado para ela de uma forma, quase podemos dizer, selvagem. Não faltam livros, jogos, brinquedos, alimentos, serviços, dirigidos especificamente ao público infantil. A colonização do mundo da infância pelo espírito do capitalismo também se sente no crescimento dos negócios especializados nelas, nos novos “conceitos”: parques temáticos, espaços de aniversários, lojas de videojogos ou férias educativas (muitas vezes pagas a preço de ouro). Ela precisa ter acesso a tudo, direito a tudo: de objetos a experiências.
Por outro lado, a criança tem também de ser produtiva. Tem de corresponder ao que esperam dela, tem de estar disponível, tem de ter sucesso, sendo submetida a pressões e expetativas que vão aumentando à medida que cresce. Trava-se um conflito entre a agenda carregada da criança e a sua própria agência, na medida em que esta, frequentemente, não é consultada ou é, de alguma forma, ludibriada para que considere “normal” ter todo o seu tempo ocupado em atividades escolhidas, organizadas e dirigidas por adultos.
Estabelece-se, pois, uma outra tensão que acompanha a génese dos direitos da criança. Historicamente, a infância tem sido observada a partir de um estatuto de vulnerabilidade: aquela a quem é dada a prioridade nos cuidados, a quem se deve proteger de todas as formas de violência, a quem se proporciona todas as oportunidades para se desenvolver de forma saudável. Paradoxalmente, esses direitos de proteção e provisão têm contribuído para fazer recuar – os, já de si, frágeis – direitos civis e políticos [5]: o direito à escolha e à liberdade de expressão e reunião; bem como os direitos (esses sim, consagrados na declaração desde 1959) a brincar e ao lazer. Sempre em nome do “interesse superior da criança”.
Nos nossos quotidianos contínuos e vertiginosos, 24 sobre 7 [6], onde qualquer manifestação de ociosidade e de não produtividade é imediatamente condenada; onde se tomam suplementos de vitamina D porque as pessoas passam os seus dias em espaços fechados; onde se preenche os vazios com tecnologias, brinquedos e diversões fáceis; urge repensar os direitos da criança à cidade. No ano em que se celebram os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos da Criança e os 30 anos da Convenção, valeria a pena escutá-las e ter em conta as suas opiniões e perceções. Só dessa forma podemos reivindicar (com elas) espaços e tempos auto-gestionados, em que estas possam escolher onde querem brincar, como e com quem, de uma forma verdadeiramente livre e autónoma.
Foto: Jorge Vilela
Notas
[1] A autora faz parte do projeto CRICity: O direito das crianças à cidade. Financiado pela FCT – PTDC/SOC-SOC/30415/2017.
[2] Zeiher, Helga (2003) Shaping daily life in urban environments. In: Christensen; O’Brien (Ed.). Children in the city: home, neighborhood and community. London: Routledge Falmer, pp. 66-68.
[3] Karsten, Lia (2005) It All Used to be Better? Different Generations on Continuity and Change in Urban Children’s Daily Use of Space, Children’s Geographies, 3, (3), pp. 275–290
[4] Em grupos focais realizados com crianças, no âmbito do projeto CRICity, são frequentes as referências aos perigos da cidade: os carros, os raptores, os bêbados, etc.
[5] A inclusão dos direitos de participação só se deu na Convenção de 1989. Além do mais, crianças são o único grupo social para quem foram elaborados direitos que não resultaram de uma conquista, como aconteceu no caso das mulheres, dos negros ou indígenas. Foram-lhes atribuídos direitos, mas estas não fizeram parte dessa construção.
[6] Crary, Jonathan (2018) 24/7: o capitalismo tardio e os fins do sono. Lisboa: Antígona
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