Circulação de pessoas e uberização: uma experiência brasileira vivida em Portugal

Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública

Título do artigo: Circulação de pessoas e uberização: uma experiência brasileira vivida em Portugal

Autor/a: Ricardo de Campos, Ema Pires

Filiação institucional: 1 Universidade Federal de Goiás (Brasil) e CICS.NOVA.UÉvora; 2 Universidade de Évora, IHC-Cehfci.UÉvora, (Portugal) e PPGAS/DAN/UnB (Brasil)

E-mail: sapiacampos@yahoo.com.br; epires@uevora.pt

Palavras-chave: Trabalho, Circulação, Brasil e Portugal.

Uma das hipóteses que permeia a nova genealogia dos movimentos sociais é que a circulação de riquezas, juntamente com a de pessoas, fugiu ao centro de controle do sistema. O capitalismo busca a sua reestruturação na apropriação da produção de riqueza social que passa pelo descontrolo do trabalho vivo.

Entre agosto e outubro de 2017 estivemos “circulando” em rápidas entrevistas na condição de clientes-usuários da UBER transportes, entre algumas das maiores capitais brasileiras. O objetivo era encontrar fragmentos que ajudassem compreender as dimensões contemporâneas dos processos de circulação de pessoas e de riqueza. Realizámos 59 viagens (de 60 agendadas) entre 24 de agosto e 24 de outubro de 2017. Circulámos por três cidades diferentes: Goiânia (41 viagens), Brasília (8 viagens) e Rio de Janeiro (10 viagens). De todos os motoristas com quem viajámos, apenas uma era mulher, e todo/as tinham menos de 55 anos. Os motoristas são prestadores de serviços, com deveres e poucos (ou nenhuns) direitos, pois são precários diante da regulação das atividades de motoristas que exercem.  Os patronos invisíveis que gerem o aplicativo ficam com 25 % da tarifa cobrada dos clientes. Há situações em que os motoristas usam o seu carro próprio, mas há outras em que é opção para eles alugarem um carro

A sociologia muitas vezes tende a lidar com a regulação apontada como forma mais equânime de trabalho na relação trabalho e capital. Portanto vê na “uberização” a “encarnação” da terceirização e da precarização, que deve ser combatida, já que traria sempre mais exploração e menos ganho para a classe trabalhadora. Buscamos ultrapassar esta dimensão propondo-nos a atentar para outros pontos que compõem a organização dos trabalhadores e as formas de organização e representação. A desregulamentação é evidentemente negativa quando se toma o trabalho regulado como a última possibilidade. A desregulamentação retira da tutela estatal o trabalho vivo, não devendo ser encarado como norma sua apropriação pela iniciativa privada. O trabalho, ou a força de trabalho para continuar no jargão marxiano, antes mesmo de ser apropriado indevidamente, pertence ao próprio agente que produz, ou seja, ao trabalhador. Resulta, assim ambígua a leitura, segundo a qual o serviço UBER e a chamada uberização da economia representam flexibilização de direitos trabalhistas.

A empresa UBER foi criada em São Francisco no ano 2000 e teve uma rápida expansão para outras capitais dos Estados Unidos e da Europa. No Brasil, bem como em Portugal, a empresa chegou em 2014, primeiro no Rio de Janeiro e São Paulo, depois em Goiânia em 2016. Por se tratar de um serviço de transporte, portanto de circulação de pessoas, houve enfrentamentos com a corporação dos taxistas que nalguns casos contribuíram denegrindo a UBER, com o argumento corporativo segundo o qual teriam aqueles exclusividade nesta forma de serviço.

O nosso argumento é que a UBER apesar de flexibilizar direitos junto com a prática do próprio trabalho, exercido par time, afronta a “consagrada” exclusividade corporativa exercida pelo monopólio do serviço prestado pelos taxis.  A chamada “uberização da economia”, desregulamente direitos já que também desregulamenta o trabalho vido. No caso em análise, a experiência da UBER é privilegiada por se remeter a um setor de “valorização”: o fluxo de pessoas juntamente com o dinheiro.  Autores no Brasil e no mundo têm utilizado o termo “uberização da economia” para designar este fenómeno de prestação de serviços na forma de auto-organização empreendedora, na qual o trabalhador está diretamente subordinado a uma grande empresa, quase sempre de capital imaterial, apesar do trabalho ser realizado por conta própria, principalmente se considerado o tempo de trabalho. A uberização da economia consiste na flexibilização, desregulamentação e, portanto, na desobrigação do capital em relação aos trabalhadores, que agora passam a ser prestadores de serviço.

A circulação de riquezas e pessoas representada pelo sistema de organização UBER é uma nova faceta do mundo do trabalho em que o ponto central é justamente a alienação do desejo. A aproximação entre o trabalho do produtor de serviços junta-se àquela do consumidor. Conforme aponta Lorenzo Mainini [1], é trabalhando para o desejo alheio, que o trabalhador consegue ter acesso ao dinheiro para a realização de si mesmo (e do seu próprio desejo) através do consumo.

Através de uma abordagem micro etnográfica, buscámos entender o sistema “UBER mundo” compreendido no interior da chamada “uberização da economia”. Por toda Lisboa e Porto é onde mais se vê carros que agora trazem a designação TVDE – Transporte por Veículos Descaracterizados juntamente com o número de inscrição, conforme prevê o Diário da República, 2.ª série — N.º 212 — 5 de novembro de 2018. Os veículos agora devem estar inscritos no IMT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes. Lembrando que a regulamentação ocorre logo depois do grande movimento da paralização dos taxistas portugueses contra a UBER, apesar de ter sido divulgada como tendo foco a Lei de Transportes.

A uberização da economia revela esta faceta conspurcada do Estado na preservação de interesses corporativos, no caso os taxis, uma corporação que tem origem no final do século XIX se populariza no século XX, “normatizando” a exclusividade da prestação de um tipo de serviço: o transporte de pessoas. Portugal conseguiu regulamentar a convivência entre Uber e taxistas, ou mesmo outras empresas e aplicativos, em favor “da flexibilidade” do trabalho, tanto que a nova Lei 212 de novembro do ano passado “interessantemente” autoriza as empresas de taxis a prestarem serviços de transporte para a UBER.

Nota

[1] Manini, L. (2016) UBER, a renda, e Marx. Revista EURONOMADE – inventare il comune sovvertire il presente, Comune&Metropoli, Dossier Marx, nov. 14 2016. Disponível: http://www.euronomade.info/?p=8304 Acesso: 11 de set. 2018.

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