Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida
Título do artigo: Desporto universitário. Velhas sendas, novos rumos? (2ª Parte)
Autor: José Augusto Rodrigues dos Santos
Filiação institucional: Faculdade de Desporto, Universidade do Porto
E-mail: jaugusto@fade.up.pt
Palavras-chave: Desporto, Desporto universitário, Portugal.
Como pedagogos do desporto, levantamo-nos, desde há muito, contra a consideração exclusiva do desporto como actividade marginal, catártica e higiénica. Retirando-o da marginalidade pugnamos por um desporto que, podendo ser catarse e higiene, deve ser fundamentalmente uma expressão de cultura, relevando da vocação ética e estética que ultrapassa o domínio físico onde se expressa.
Caminhamos para uma sociedade de lazer em que o desporto, ao lado de outras formas de expressão cultural, se constituirá como meio de defesa eficaz contra a robotização das mentes e dos costumes. Ao emergir da sociedade como fenómeno complexo e não como epifenómeno passageiro e superficial como alguns pensaram, o desporto, em circuito retroativo marca a sociedade hodierna como regras e rituais cada vez mais institucionalizados e de superior pregnância sociológica. Os instrumentos heurísticos que nos serviram para compreender o desporto no passado mostram-se incapazes de penetrar no desporto hodierno.
Em 1975, na fase mais quente após o 25 de Abril, momento em que todos os valores eram postos em causa, Jorge Crespo, num arroubo visionário falhado, afirmava que “a desestruturação do futebol profissional, o seu apagamento e eventual destruição, é um facto irreversível” (sic). Sentimos, sim, que os primeiros momentos revolucionários eram mais propensos à nossa afirmação de cidadania e participação política, procurando nervosamente novos valores. Pusemos em causa, além de alguma axiologia religiosa ultramontana, alguns dos ícones culturais que foram cimento do Estado Novo e que luziram no fado e no futebol. Alguns tentaram marcá-los com os estigmas do autoritarismo e alienação social. Enganamo-nos. Não era o fado e o futebol que eram alienantes; éramos nós que estávamos alienados dos mais elementares direitos cívicos e políticos.
Ultrapassados os momentos de efervescência catártica e de crítica radical aos valores estabelecidos, já de posse de alguns instrumentos conceptuais novos, aceitamos o regresso do fado e futebol que faziam parte da nossa mais conseguida idiossincrasia. Com a nossa libertação cívica e política libertaram-se também todas as expressões culturais que jaziam adormecidas nos nossos sonhos de utopia, assistindo-se a um boom significativo do desporto que ganhou uma rara pregnância social, única na história da grei.
O desporto ganhou dimensão cultural e utopia. Utopia que se concretizou nos feitos maravilhosos dos nossos meio-fundistas e fundistas do Atletismo. O desporto foi campo úbere de afirmação Pátria. Com a nossa emoção mais profunda expressa em lágrimas de alegria recuperamos, com o feito olímpico do Carlos Lopes, um sentimento de autoestima Pátrio que só terá paralelo nos feitos dos nossos grandiosos navegadores.
O desporto elevou-nos a dimensão de cidadania e respeito internacional, por isso o devemos reformular, cada dia, na senda da perpetuação das nossas mais íntimas utopias. O desporto, como forma de expressão de sociabilidade, deve ser catalisador da realização ontológica. O desporto deve ser terreno vivo de encontros humanos tendo a festa, o riso, a alegria e o humor como referências e tendo como denominador comum a competição.
Competir como processo de elevação pessoal e social, aceitando as hierarquias impostas pela performance desportiva. Nesse contexto, o adversário deve ser visto não como o inimigo a destruir, mas como o companheiro necessário à aventura da auto e hétero superação pela via do desporto. Querer ganhar sempre, mas no respeito das regras, das normas, dos valores.
É esta a dimensão que pretendo para o desporto universitário que deve ser assumido ab initio sem sofismas. De posse dos instrumentos conceptuais que validam a prática desportiva correcta, importa definir o estado de situação do desporto universitário em Portugal.
– Não existe desporto universitário em Portugal
Existe uma prática desportiva circunstancial por partes dos estudantes tendo em vista os campeonatos universitários. Esta prática não é o resultado dum empenhamento contínuo, sistemático e exclusivo, mas sim o recurso aos melhores atletas federados que já saturados da sua prática habitual “fazem o favor” de representar a sua faculdade, raramente nos campeonatos regionais e mais frequentemente nos campeonatos nacionais. Esta é a mentira primordial do desporto universitário e que o tem atravessado no decurso dos tempos.
– Não existem condições físicas para existir desporto universitário
Reflexo dos vários atavismos concernentes às coisas do corpo, nunca se cuidou de apetrechar as várias faculdades com os seus próprios espaços desportivos. As instituições que centralizam as preocupações desportivas das principais academias (CDUP no Porto, Académica em Coimbra e CDUL em Lisboa), embora vocacionadas para tal, nunca, repetimos, nunca conseguiram dar resposta quantitativa às exigências duma prática desportiva regular dos estudantes universitários.
– Não existem condições académicas para existir desporto universitário
A premência de horários carregados, muitas vezes elaborados a partir dos interesses externos dos professores, inviabiliza uma prática desportiva sistemática.
– Os estudantes universitários, na sua maioria, não possuem cultura desportiva
Uma grande percentagem dos estudantes que chegam à Universidade tem uma prática desportiva esporádica ou mesmo inexistente. Sem uma cultura desportiva anterior é difícil assumir o desporto como fator de realização pessoal. No entanto, há quem seja o melhor aluno do seu curso mantendo ininterrupta uma prática desportiva de elevada qualidade.
– Não existe uma cultura nacional desportiva em que o desporto universitário seja mais um dos patamares da procura da excelência desportiva global
O desporto universitário concretiza-se como epifenómeno do desporto federativo nacional.
Nos Estados Unidos da América, o desporto universitário possui uma carga social e académica importante, consubstanciando-se como patamar fundamental na hierarquização competitiva do desporto norte-americano.
Em Portugal, o panorama deprimente que caracteriza o desporto universitário, considerado como prática avulsa sem pregnância no tecido social, é o reflexo da extrema intelectualização dos saberes universitários. Já Nietzsche avisava que “o teu corpo tem mais sabedoria que a tua inteligência”; é lógico que devemos aqui considerar o corpo como entidade ontológica completa. Mesmo que existam raros exemplos de corpos minados pela doença a exprimir-se pela excelência intelectual (e.g. Stephen Hawkins), uma saudável fisiologia é a base estruturante que permite a informação passar a conhecimento e este transformar-se em sabedoria.
Urge, portanto, redimensionar o desporto universitário, segundo uma dupla vertente: uma competitiva, outra de lazer. Ambas são importantes e devem funcionar de forma complementar. O desporto universitário competitivo deve ser assumido sem paternalismos ou mentiras competitivas. Deve ser suportado por um quadro competitivo próprio, com participação exclusiva que impossibilite a penetração de atletas federados. Deve existir um desporto competitivo universitário paralelo ao desporto competitivo federado. Só assim o desporto universitário poderá ter autonomia e ganhar importância escolar e social.
Depois, teremos o desporto de lazer e aventura, imenso campo a explorar através de práticas programadas ad hoc e que reflitam, o mais possível, a diversidade de interesses que são despertos a cada momento.
Pode parecer, à primeira vista, que estamos a laborar em fenómenos colaterais ao afã universitário de procura da excelência na aquisição do conhecimento. No entanto, em alguns países, o currículo desportivo é valorizado de forma determinante na escolha dos melhores para a assunção dos cargos profissionais.
Quem se autodisciplinou e superou pela prática desportiva, ganhou os alicerces fundamentais para detonar vontade e empenhamento na luta, cada vez mais acesa, da afirmação e realização profissionais.
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