Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública
Título do artigo: No trabalho: o que somos, as nossas criações e o que nos geram
Autora: Andreia Magalhães Azevedo
Filiação institucional: Socióloga, Investigadora e Consultora Organizacional, Executive Coach
E-mail: andreiamagalhaesazevedo@gmail.com; http://www.linkedin.com/in/aazevedo
Palavras-chave: Organização do Trabalho, Sentimentos, Progresso Social.
Nas últimas décadas e atualmente, no contexto das sociedades modernas industrializadas, as organizações empresariais têm vindo a transformar os seus processos de gestão, designadamente, através da introdução de “novos” métodos e do aperfeiçoamento de sistemas e de ferramentas com vista à otimização da organização do trabalho e dos seus feitos. A gestão por objetivos de negócio, o controlo de indicadores das atividades e a avaliação dos desempenhos de equipamentos e de trabalhadores, são exemplo de processos no âmbito da implementação desses sistemas – estruturados em lógicas racionais, promotoras de previsibilidade e controlo gestionário –, visando ganhos em objetividade, produtividade e eficiência, na concretização dos resultados organizacionais. A construção e a monitorização de métricas quantitativas, o foco na análise e na redução de desvios, a definição e a regulação de atividades delimitadas, marcam sendas semestrais, anuais e outras – que envolvem uma diversidade de empresas e inúmeras pessoas –, na operacionalização de pontos “A” e “B”, catalisadores de metas a atingir – simultaneamente reveladoras de diferentes ponderações entre fatores económicos e de progresso social.
E prossegue-se, mesmo com objetivos reais e esforços efetivos, na melhoria e no refinamento para a implementação de versões mais “evoluídas” dos sistemas, condicionados pela prevalência de modelos competitivos, em que expressões imperativas como “a melhor”, “líder em”, “de excelência” – na formalidade e na prática –, pouco incluem de sentimentos e de equilíbrio humano que, a nosso ver, carecem do devido reconhecimento e atenção, no âmbito das práticas organizacionais, no trabalho, especialmente através da implementação de abordagens holísticas do ser humano, integradoras da sua consciência e subjetividade. A respeito dos sentimentos e da sua relevância notamos, nas palavras de António Damásio, neurologista e neurocientista, que “influenciam o processo mental a partir do interior e são indispensáveis devido à sua necessária positividade ou negatividade, à sua origem em ações conducentes à saúde ou à morte, e à sua capacidade de cativar e abalar o proprietário do sentimento, a garantir que se preste atenção à situação”, pelo que “o carácter único destes fenómenos está ligado ao papel homeostático crítico que desempenham” [1].
Por sua vez, é reconhecida a centralidade que o trabalho assume na vida das pessoas, ocupando um espaço preponderante no seu tempo físico de permanência e de dedicação mental [2]. Muito além de providenciar um meio de subsistência, contribui em grande medida para os processos de afirmação identitária e social [3], abrangendo diversas gerações ativas, uma variedade de significados e de fatores de realização associados [2]. Não obstante, a vida nas empresas e as diferentes situações de trabalho, paralelamente a fatores de alegria e de prazer, encerram experiências de dor e de sofrimento individual, com amplitudes e impactos cuja criticidade exigem uma compreensão e ações em diferentes níveis. Na definição do conceito de trabalho, João Areosa, sociólogo, salienta também que o mesmo “é passível de conter resistências e conflitos, depende de afetividades e emoções, está repleto de diferentes formas de poder e dominação e é ainda suscetível de gerar quer coesão e emancipação, quer descompensações e mal‑estar”, numa ambivalência entre “o prazer que suscita e o sofrimento que produz” [3].
Christophe Dejours, psiquiatra e psicanalista, reconhecido pela sua abordagem da psicodinâmica do trabalho, tem-se debruçado sobre os impactos do trabalho na saúde mental [3][4]. Analisando as alterações modernas nos modos de organização do trabalho e as estratégias utilizadas pelos trabalhadores para lidar com o sofrimento provocado pelas novas exigências organizacionais, Dejours refere o aumento das patologias relacionadas com o trabalho e o surgimento de novas, o que sugere um enfraquecimento nos mecanismos de defesa criados pelas pessoas [4]. Menciona ainda que as investigações em psicodinâmica do trabalho “demostraron que la introducción y la rápida generalización de los nuevos métodos de evaluación individual del desempeño, llevados a cabo por las ciencias de la gestión, tuvieron un papel fundamental en la destrucción de las potencialidades del trabajo en colectivo, de cooperación y solidaridad”, pela glorificação do desempenho individual, pela desestruturação das solidariedades e pelo favorecimento de processos de servidão voluntária, colocando cada trabalhador, por si, “frente a la dominación, la injusticia, el asedio, la amenaza de despido”, gerando solidão e medo [4].
Efetivamente, observar os modos de organização do trabalho, as lógicas inerentes, as dinâmicas e os efeitos que daí decorrem, as interpretações e os sentimentos que despoletam nos trabalhadores, assume-se como fundamental para a transformação de impactos negativos, reais, ao nível da saúde e do bem-estar dos trabalhadores, individualmente e coletivamente considerados, bem como do progresso social gerado pelas empresas. O tema da sustentabilidade começa, a nosso ver, na sustentabilidade da condição humana, nas suas vertentes biopsicossocial. Reorganizar os modelos e as estruturas organizacionais, integrando a sua humanidade e o que significa ser humano – incluindo o conhecimento e o reconhecimento do valor dos sentimentos, da subjetividade e da sociabilidade –, envolve uma transformação de paradigma, reposicionando as empresas ao serviço das pessoas, na realização da sua razão de existir, social. Observamos, “a busca estratégica da felicidade pressupõe sentimentos”, uma vez que estes, através da interpretação da dor e do prazer, “concentraram o intelecto, deram-lhe um objetivo, e ajudaram a criar novas formas de regulação da vida”, pelo que a “homeostasia eficaz, ou mesmo ótima, exprime-se como bem-estar e até alegria” [1]. Os desafios – e as oportunidades –, designadamente no trabalho, envolvem a capacidade de gerar o que existe de melhor a nível coletivo, ou seja, a harmonia e vivência em conjunto [4].
Notas
[1] Damásio, A. (2017), A Estranha Ordem das Coisas – A Vida, Os Sentimentos e as Culturas Humanas, 1.ª ed., Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores.
[2] Azevedo, A. M. (2016), Meaning for Leaders: Trabalho com Significado e Sentido de Vida, Dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade do Porto, Disponível em URL: <https://sigarra.up.pt/flup/pt/pub_geral.pub_view?pi_pub_base_id=139225>.
[3] Areosa, J. (2013), Comentário ao artigo “A sublimação, entre sofrimento e prazer no trabalho” – Christophe Dejours e a Psicodinâmica do Trabalho, Revista Portuguesa de Psicanálise, 33 (2), pp. 29–41, Disponível em URL: <https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/26902/1/Christophe%20Dejours%20e%20a%20Psicodin%C3%A2mica%20do%20Trabalho.pdf>.
[4] Dejours, C. (2011), Psicopatologia do trabalho – Psicodinâmica do Trabalho, Laboreal, 7 (1), pp. 13-16, Disponível em URL: < http://laboreal.up.pt/files/articles/13_16f2.pdf>.
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