Dimensão analítica: Mercado e condições de trabalho
Título do artigo: Trabalhar na cloud: o artista como trabalhador na idade do ciberespaço
Autora: Mariana Rei
Filiação institucional: IHC, FCSH-UNL
E-mail: mariana.rei@alunos.fcsh.unl.pt
Palavras-chave: trabalho, indústrias criativas, ciberespaço.
Estudar as atuais reconfigurações produtivas implica atentar ao impacto do desenvolvimento das tecnologias digitais e da internet na configuração de um novo modelo de trabalho a ocidente, já não assente na figura do operário e numa vincada divisão técnica, mas na figura do artista e no trabalho imaterial – flexível, empreendedor, autónomo [1]. No setor criativo esta questão torna-se evidente, se considerarmos como a emergência do termo indústrias criativas deriva do desenvolvimento das tecnologias digitais e da internet, e de uma primeira conceção em torno das designadas indústrias de base tecnológica, assentando nos mesmos princípios, de trabalho imaterial, baixo custo e risco. Embora o termo, enunciado numa perspetiva etic, advogue uma mudança de paradigma do trabalho e melhoria da qualidade de vida, ele não reflete as configurações particulares do trabalho criativo, que diferem nalgumas questões das designadas indústrias de base tecnológica, ao implicarem risco, experimentação, nem sempre se coadunando com este tipo de lógicas.
O desenvolvimento tecnológico acelerado provocou profundas mudanças no setor, designadamente no design, operadas a vários níveis. A mobilidade e custo reduzido das tecnologias digitais e da internet relativamente às tecnologias tradicionais favoreceram a sua proliferação e democratização, apoiando a externalização do risco e custos associados ao trabalho do empregador para o trabalhador. O designer passa a dispor das suas próprias ferramentas de trabalho, mediante o aproveitamento do computador e da internet simultaneamente enquanto instrumentos de lazer e trabalho. Por outro lado, o desenvolvimento tecnológico acelerado implica uma constante atualização de conhecimentos, cujos custos e tempo passam a ser suportados pelo trabalhador [2].
Adicionalmente, ao mesmo tempo que favoreceu um aumento do ritmo laboral, centralizando as ferramentas de trabalho num único dispositivo (um computador com ligação à internet), a revolução digital incitou também uma uniformização do trabalho criativo. Perante a gratuitidade, rapidez e disseminação de recursos disponíveis na internet, o processo criativo sofreu uma certa padronização de soluções. Assistimos, assim, não só à informatização quase total do design [3], como ao domínio quase exclusivo do trabalho na internet, se atentarmos por exemplo aos principais softwares gráficos atuais, que funcionam unicamente na cloud. O computador centralizou também no designer um conjunto de funções até então distribuídas por diferentes áreas profissionais, levando ao desaparecimento de várias áreas específicas.
Verifica-se, ainda, uma sobreposição das esferas pessoal e profissional do trabalhador, não só ao nível das ferramentas, como também do horário e local de trabalho. Em vez da libertação e autonomia auspiciadas, as tecnologias digitais e a internet isolaram o trabalhador em novos espaços fixos, mais baratos, designadamente no espaço doméstico. O trabalhador passa, assim, a estar sempre disponível, convertendo-se o tempo livre em tempo de trabalho. Esta flexibilização laboral é particularmente crítica para os trabalhadores criativos, pela sua propensão, pela natureza do trabalho criativo, a ritmos de trabalho irregulares. Longe de remeter para a libertação do indivíduo associada às conceções românticas do artista, apoiou a precarização sistémica do trabalho, traduzindo-se numa profunda desestruturação no plano do indivíduo.
Esta flexibilização favorece a empresarialização progressiva do design [3], pela acumulação dos papéis de trabalhador e patrão na figura do trabalhador independente. Esta alegada autonomização do designer, que deixa tendencialmente de integrar o quadro de uma empresa para se constituir ele próprio como microempresa, resulta contudo, não numa efetiva democratização laboral pela diluição do controlo direto sobre o trabalho característico do fordismo, mas no movimento oposto. A eliminação dos intermediários diretos em favor do teletrabalho provoca um novo tipo de racionalização produtiva através do controlo indireto e de um esquema de subcontratação em cascata. Esta fragmentação da força de trabalho resulta na concentração do capital em grandes multinacionais, num duplo movimento aparentemente paradoxal que Beatrice Appay denomina de autonomia controlada [4].
O entendimento do papel central da tecnologia no incremento da produtividade não é recente. A inovação tecnológica, ao impulsionar uma nova divisão internacional do trabalho, assume-se como uma forma sofisticada de acumulação de capital, que David Harvey designa de acumulação flexível. Este regime resulta da recombinação de duas estratégias de procura de lucro traçadas por Marx [5]: ao empurrar o indivíduo para a esfera doméstica, o desenvolvimento tecnológico (mais-valia relativa) impulsionou velhas formas de acumulação, através do alargamento do horário de trabalho (mais-valia absoluta), que assim se dilui com o tempo de lazer. Mas, nota Harvey, «apoiar-se nessa estratégia enfatiza a importância de forças de trabalho altamente preparadas, capazes de compreender, implementar e administrar os padrões novos, mas muito mais flexíveis, de inovação tecnológica e orientação do mercado», pelo que o capitalismo «depende cada vez mais da mobilização de forças de trabalho intelectual como veículo para mais acumulação» [5].
No setor criativo, o teletrabalho alia-se, então, a velhas práticas de organização laboral, mediante um retorno ao espaço doméstico e o crescimento do setor informal. Por outro lado, as indústrias criativas, de forte base tecnológica, coexistem e articulam-se diretamente com as indústrias «tradicionais», integrando um mesmo sistema. Conforme nota Inês Fonseca, «si con frecuencia la precariedad laboral obliga a los individuos a someterse a situaciones al margen de la condición salarial, este fenómeno no puede ser considerado como exterior a la propia sociedad salarial» [6].
Notas
[1] Ver Rei, Mariana (2016), Do operário ao artista como trabalhador. Uma etnografia em contexto industrial No vale do Ave, Lisboa: Le Monde Diplomatique-Edição Portuguesa e Deriva Editores.
[2] ARDEF-Artistas plásticos, designers e fotógrafos do sector intelectual do partido comunista português (2014, março), Quem faz aqui o design? Encontro sobre o trabalho do design em Portugal – Síntese temática do debate, Lisboa: ARDEF, p. 6.
[3] Moura, Mário (2014), «O design português e a identidade do neoliberalismo», Imprópria, 4, p. 39
[4] Appay, Beatrice (2005), La dictature du succès: le paradoxe de l’autonomie contrôlée et de la précarisation, Paris: L’Harmattan, p. 69.
[5] Harvey, David, 1993, Condição pós-moderna, São Paulo: Loyola, pp. 174-175.
[6] Fonseca, Inês, 2008, «La precarización en la sociedad portuguesa: donde se habla de proletarios agrícolas, de desempleados y de formas de supervivência», Castillo, S. & Devillard, M. J. (orgs.), Actas do XI Congreso de Antropología Retos Teóricos y Nuevas Prácticas, Ankulegi Antropologia Elkartea, p. 82.
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