Cultura e igualdade na jurisprudência dos tribunais portugueses

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: Cultura e igualdade na jurisprudência dos tribunais portugueses

Autora: Patrícia Jerónimo

Filiação institucional: Escola de Direito da Universidade do Minho

E-mail: ppmj@direito.uminho.pt

Palavras-chave: cultura, criminalização, exceção cultural.

Alguns dos debates académicos mais interessantes da atualidade, no domínio do Direito, prendem-se com o modo como a diversidade cultural interage com a prática jurídica, sobretudo com a prática dos tribunais. Pense-se nas discussões mantidas nos últimos anos a respeito da incorporação de institutos jurídicos islâmicos na jurisprudência de tribunais europeus [1] e a respeito da admissibilidade do argumento da exceção cultural (cultural defense) como forma de justificar e, por aí, diminuir a culpa ou desculpar inteiramente comportamentos de outro modo tidos como crime [2]. Pense-se ainda nas discussões a respeito do estatuto a reconhecer às ordens jurídicas minoritárias [3] e a respeito do possível alcance da jurisdição dos muito controversos Conselhos da Sharia, no Reino Unido [4].

O consenso internacional sobre a importância da cultura e da diversidade cultural para a realização pessoal dos indivíduos e para a paz entre os povos – refletido, por exemplo, na Declaração Universal da UNESCO sobre Diversidade Cultural, de 2001 [5] – torna mais difícil a rejeição liminar da relevância de fatores culturais na apreciação de casos concretos, mas a posição de princípio da maioria dos decisores jurídicos continua a ser a de que o princípio da igualdade não admite a consideração de fatores culturais e de que a integridade do sistema jurídico não admite a incorporação de institutos jurídicos estrangeiros potencialmente conflituantes com os valores fundamentais da ordem jurídica do foro, como, por exemplo, o secularismo e a igualdade de género [6]. A preservação destes valores tem, de resto, motivado, na Europa ocidental, a adoção de medidas claramente dirigidas contra normas e práticas culturais de grupos minoritários, como a proibição do véu islâmico nas escolas públicas francesas e da burca e do niqab nos espaços públicos, em França e na Bélgica.

Em Portugal, o debate académico sobre a interação entre Direito e Cultura é ainda incipiente e, na prática dos tribunais, a questão da relevância de fatores culturais praticamente só é levantada em casos que envolvam membros das comunidades ciganas. Ainda que possam dedicar uma boa parte dos textos das suas decisões a apreciar as características culturais específicas das comunidades ciganas [7], os tribunais portugueses tendem a decidir contra a relevância dessas características para a apreciação dos casos concretos, fazendo-se valer de uma leitura formalista do princípio da igualdade, cuja justiça é, em nosso entender, muito questionável. Uma decisão emblemática deste formalismo judicial pode encontrar-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de junho de 2010, em que o Tribunal reapreciou a condenação, de um indivíduo de etnia cigana, numa pena de seis anos de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de criança [8]. Entre os argumentos que avançou perante o Supremo, o arguido (de 21 anos) referiu a circunstância de as pessoas de etnia cigana iniciarem a sua vida sexual mais cedo do que o resto da população portuguesa. O Supremo rejeitou liminarmente o argumento, que disse “despido de peso”, em nome do princípio da igualdade. “A lei é de aplicação geral e abstracta, para todo o país, merecendo a tutela inscrita no art.º 171.º, do CP todas as crianças até aos 14 anos não excepcionando as de qualquer raça, o que conduziria a um tratamento diferenciado, de chocante favor para o arguido, em flagrante oposição com princípios constitucionais estruturantes do Estado de direito, particularmente o da igualdade com tradução no art.º 13.º, da CRP”. O Tribunal acabou, no entanto, por reduzir a medida da pena aplicada ao arguido, de seis para cinco anos, por ter dado como provado que fora a vítima, uma menina cigana de 11 anos de idade, a iniciar os contactos e a marcar os encontros com o arguido.

O Supremo Tribunal de Justiça voltou a invocar o princípio da igualdade no seu acórdão de 7 de setembro de 2011 – um dos poucos a envolver muçulmanos, em Portugal – mas, aqui, já parece dar uma maior relevância aos fatores culturais, na medida em que indica, como aspeto a ponderar na reapreciação da pena aplicada a um indivíduo condenado por crimes de violação e rapto, o “fator de risco” representado pelas “características da cultura a que pertence (o arguido é oriundo de Marrocos e de religião muçulmana), com valores e crenças específicas, com destaque para a discriminação sexual em função do género, o que poderá traduzir-se numa desvalorização dos direitos dos outros, em particular mulheres” [9]. O Supremo não deixou de reconhecer que este fator de risco não pode ser usado contra o arguido – precisamente por causa do princípio da igualdade –, mas parece aceitar tranquilamente a associação linear entre abusos sexuais, discriminação sexual e cultura/religião muçulmana, o que é, em nosso entender, deveras preocupante.

Notas

[1] Büchler, Andrea (2011), Islamic law in Europe? Legal pluralism and its limits in European Family Laws, Farnham: Ashgate; Giunchi, Elisa (ed.) (2014), Muslim family law in Western courts, London: Routledge.

[2] Foblets, Marie-Claire; Renteln, Alison Dundes (eds.) (2009), Multicultural Jurisprudence: Comparative Perspectives on the Cultural Defense, Oxford: Hart Publishing.

[3] Malik, Maleiha (2012), Minority Legal Orders in the UK: Minorities, Pluralism and the Law, London: The British Academy.

[4] Griffith-Jones, Robin (ed.) (2013), Islam and English Law: Rights, responsibilities and the place of Shari’a, Cambridge: Cambridge University Press.

[5] Universal Declaration on Cultural Diversity, Disponível em URL [Consult. 22 fev. 2015]: <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127162e.pdf>.

[6] Jerónimo, Patrícia (2011), Direito Público e Ciências Sociais: o contributo da Antropologia para uma densificação “culturalista” dos direitos fundamentais, Scientia Iuridica, LX, 326, pp. 346-382.

[7] Considere-se, por exemplo, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 12 de junho de 2007, no processo 926/07-2. Disponível em URL [Consult. 22 fev. 2015]: <http://www.dgsi.pt>.

[8] Acórdão proferido no processo 252/09.0PBBGC.S1. Disponível em URL [Consult. 22 fev. 2015]: <http://www.dgsi.pt>.

[9] Acórdão proferido no processo 498/09.1JALRA.C1.S1. Disponível em URL [Consult. 22 fev. 2015]: <http://www.dgsi.pt>.

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