Vitimologia: O estudo da vítima e a importância para a análise do fenómeno criminal

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: Vitimologia: O estudo da vítima e a importância para a análise do fenómeno criminal

Autora: Ana Sani

Filiação institucional: Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa

E-mail: anasani@ufp.edu.pt

Palavras-chave: Vitimologia, vítima, crime.

A Vitimologia é uma ciência que tem vindo a firmar-se nas últimas décadas, por via de estudos e teorizações que têm contribuído de forma decisiva para o incremento do debate em torno da vítima de crime, o seu estatuto e a sua participação no cenário criminal, assim como para a compreensão necessária da realidade social ou para a discussão incontornável acerca da participação da vítima na realização da Justiça. O campo de estudo da vítima alargou-se desde os finais dos anos 40 até aos nossos dias, contribuindo a comunidade científica com pesquisas e conceptualizações que permitiram um reconhecimento próprio da Vitimologia enquanto ciência [1].

Embora à Vitimologia se lhe reconheça o estatuto autónomo enquanto ciência destacada da Criminologia, certo é que é inegável o contributo que esta pode dar para o estudo do crime. Aliás, originalmente a Vitimologia começou por ser usada para designar a área de estudo que se centrava na análise da relação entre a vítima e o ofensor [2]. De facto, naquele que foi o primeiro período da Vitimologia desde meados dos anos 40 até finais dos anos 60, havia grandes preocupações etiológicas no estudo do crime, tentando perceber-se qual o papel da vítima no cenário criminal. Tal ideia parte da conceção dinâmica existente de que o crime é um fenómeno que pode ser determinado não apenas por aspetos de personalidade criminal do agente, mas também por outros aspetos motivacionais, entre estes o comportamento da potencial vítima. Esta abordagem que emergiu apenas porque se queria explicar e fundamentar o ato criminoso em si [3], teve importantes consequências para a vítima e para a sociedade no geral [4]. De facto, neste período vários conceitos organizaram o discurso da época, como os de vítima nata, precipitadora, facilitadora, provocadora [1] [5], o que condicionou toda a figura da vítima, culpabilizando-a, ao legitimar o comportamento do agressor [6].

Os diversos estudos que foram surgindo, alicerçados à conceção dominante de vítima do período supracitado, conduzem a uma Vitimologia de censura da vítima. Todavia, com o passar do tempo, tornou-se claro o entendimento de uma Vitimologia de ação em favor da vítima, contribuindo para o apoio à mesma, para melhoria da compreensão do crime, a sua natureza e extensão, o impacto na vítima e os processos de vitimação [2]. Para tal muito contribuíram os movimentos em prol das vítimas de crime nos anos 70, que promoveu alterações políticas importantes e que resultaram num crescente número de iniciativas que visavam a assistência à vítima, a emergência de programas de compensação, a criação de casas de abrigo, de programas de prevenção e tratamento [1].

Assiste-se, deste modo, a uma transformação da Vitimologia, de um estatuto de disciplina académica para um movimento humanista que emerge da investigação científica para o plano de ativismo político [3]. A investigação aplicada e o diálogo intelectual mantido em torno de uma série de problemáticas de vitimação têm revertido em prol da visibilidade social de algumas situações (e.g., a violência doméstica, o tráfico de seres humanos), mas outras há que continuam ocultas ou, pelo menos, não detém o estatuto que lhe permita um reconhecimento mais formal e apoiando por legislação específica (e.g., exposição de crianças à violência interparental, o stalking, o mobbing, assédio sexual) [7].

Assim, é de todo crucial, quer ao nível da sua formação académica, quer no exercício da sua profissão, que quem estuda o crime detenha um conhecimento profundo de Vitimologia. Entende-se aqui não apenas o estudo dos diversos fenómenos de vitimação, (criminais ou não), os tipos de exposição, as consequências, os processos de vitimação implicados, mas ainda as práticas de intervenção [8], as reações sociais e as respostas institucionais. Importa obter conhecimentos e treinar competências de modo a poder em entidades várias, como comissões de proteção de crianças e jovens em risco, centros de acolhimento, gabinetes de apoio à vítima, casas de abrigo, órgãos de polícia criminal, entre outros, prestar um serviço profissional. É importante estar em constante atualização, quer porque vão surgindo diretivas e diplomas internacionais novos, mudanças na legislação nacional e novos campos de atuação (e.g., Vitimologia Forense [9]).

A exigência de uma enorme interdisciplinaridade na atuação no campo da criminologia obriga a uma interseção de saberes, que auxiliem a análise da realidade complexa do fenómeno criminal. A Vitimologia reveste-se de uma dimensão multifatorial e aplicada, sendo visível por todo o país e fora deste, a existência de inúmeros projetos e iniciativas que integram profissionais de diferentes áreas das ciências sociais.

Importa sublinhar que a Vitimologia é hoje um campo desafiante de atuação, que impõe um desenvolvimento contínuo de investigação, a reinvenção de estratégias de prevenção do crime e de outras formas emergentes de violência, a criação de programas de intervenção orientados para a vítima, para o agressor e outros elementos e contextos de ocorrência desses fenómenos.

Por fim, não esqueçamos a dimensão mais política e social, os contributos que a Vitimologia dá para a evolução das mentes e das sociedades. Há certamente ainda vários fenómenos que não têm ainda qualquer enquadramento legal e vítimas sem verdadeiro estatuto de vítima, mas há uma série de profissionais que se vêm habilitando de conhecimentos e de competências, para, nos três níveis de prevenção (primária, secundária e terciária), atuarem sobre a violência e o crime.

Notas

[1] Burgess, Ann; Regehr, Cheryl; Roberts, Albert (2010), Victimology. theories and applications, Massachusetts: Jones and Bartlett Publishers.

[2] McLaughlin, Eugene; Muncie, John (2013), The sage dictionary of criminology, 3rd Edition, Los Angeles: Sage Publications.

[3] Fattah, Ezzat (2000), Victimology: Past, present and future, Criminologie, 33 (1), pp. 17-46.

[4] Wallace, Harvey (2006), Victimology. legal, psychological and social perspectives, 2th ed., Boston: Pearson.

[5] Daigle, Leah (2012), Victimology. A text/reader, London: Sage.

[6] Doerner, William; Lab, Steven (2008), Victimology. 5th ed., Cincinnati: Anderson Publishing.

[7] Sani, Ana (2011), Temas de Vitimologia: realidades emergentes e respostas sociais, Coimbra: Editora Almedina.

[8] Sani, Ana; Caridade, Sónia (2013), Violência, agressão e vitimação: Práticas para a Intervenção, Coimbra: Almedina.

[9] Turvey, Brent (2013), Forensic Victimology: Examining Violent Crime Victims in Investigative and Legal Contexts, 2nd ed., San Diego: Elsevier Science.

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