Dimensão analítica: Desporto
Título do artigo: (Re)pensar o género nas práticas educativas no contexto da atividade física e desportiva
Autora: Carina Novais
Filiação institucional: Centro de Investigação de Actividade Física e Lazer – CIAFEL Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
E-mail: carinanovais@hotmail.com
Palavras-chave: Atividades físicas e desportivas, crianças, género.
Trabalhar para a mudança cultural de estereótipos discriminatórios de género é um desafio. Mais ainda quando estes se despoletam em idades tão precoces – nas crianças – e quando se reproduzem em instâncias onde a reconfiguração das desigualdades de género deveria estar mais patente – na Escola. No âmbito da investigação desenvolvida pelo Centro de Investigação de Actividade Física e Lazer – CIAFEL – da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, a equipa de trabalho de que fiz parte, desenvolveu uma experiência de cariz etnográfico com 28 crianças (16 raparigas e 12 rapazes) [9-10 anos] de uma escola básica da cidade do Porto. Concebida em torno da observação directa de aulas de enriquecimento curricular de Atividades Físicas e Desportivas – com registos sistemáticos de duas observações semanais – por duas observadoras – num período de quatro meses e com análise de conteúdo em NVivo10.
O ponto mais relevante do trabalho desenvolvido prendeu-se com os protagonistas deste “espaço” – professores e alunos/as – e com as interações sociais e comportamentos alocados à atividade física e desportiva com o objetivo de traçar estereotipia de género. Esta experiência tornou-se parte de uma discussão relativamente à constante vigilância que a Escola, enquanto instituição social de ampla intervenção, exerce sobre as habilidades, comportamentos e desempenhos dos indivíduos – meninos e meninas; rapazes e raparigas; homens e mulheres da sociedade. Os conteúdos curriculares – neste caso, relacionados com atividade física e desportiva – criam essa diferenciação. Ela é, por vezes, percecionada como coincidente com os “níveis de desempenho.” Mas, se uns praticarem uma qualquer modalidade desportiva apenas entre si, seguindo a orientação de que cumprem um nível de desempenho superior, e outros a praticarem também apenas entre si seguindo-se por níveis de desempenho inferiores, não teremos maioritariamente meninos de um lado e meninas do outro? Não deverá este espaço criar em todas as crianças, a motivação para praticarem atividade física e desporto no futuro? Os conteúdos curriculares desta, como de outras áreas temáticas, não deverão reconfigurar a normatividade dominante acerca do género?
Alguns apontamentos neste trabalho desenham orientações que se pretendem para uma sociedade mais equitativa quando se fala nas oportunidades para rapazes e raparigas no acesso ao desporto. Por isso, importa salientar os comportamentos dos/das protagonistas no desempenho das atividades físicas e desportivas observadas. Os registos relativos à “ocupação do espaço físico” mostraram que são os rapazes que ocupam os espaços de dominância nas atividades propostas pelo professor – as zonas centrais do espaço físico – e que são as raparigas que mais frequentemente ocupam os espaços periféricos. Os rapazes são também os que expressam mais comportamentos de subvalorização relativamente ao desempenho do outro género – maioritariamente através de expressões verbais depreciativas [diz uma rapariga (9 anos): às vezes, estamos a jogar futebol e eu marco um golo, eles [os rapazes] dizem para os outros [rapazes]: “olhem uma rapariga a marcar-vos!” (ironia). Quer dizer que eles são mais fracos do que eu e os outros estão a gozá-lo. Depois, os rapazes já não querem jogar mais connosco para não estarem ali a serem gozados]. Tal como refere Louro [1], todos os indivíduos são educados a classificar os outros através do seu corpo, dos seus gestos, dos seus comportamentos. As expressões corporais dos rapazes, no desempenho das actividades, são claramente mais expansivas do que as das raparigas, mais reservadas, menos expostas, mostrando como o “movimento” é condicionado por estereotipia de género.
Nas atividades físicas e desportivas que implicam maior competitividade – como são exemplos o futebol e o basquetebol – registam-se menos oportunidades para as raparigas participarem em dinâmicas decisivas do jogo [diz uma rapariga (9 anos): os rapazes não nos escolhem para passar a bola]. A superioridade dos rapazes no desempenho de atividades desportivas é aceite por todos/as como natural e esperada [diz uma rapariga (9 anos): os rapazes já têm mais jeito do que as raparigas. As raparigas não têm muito jeito, nem muita prática]. O corpo é alvo de tantas influências culturais que torna susceptível que um género se torne mais hábil do que o outro em termos motores.
Quando a interação social se desenvolve apenas entre os rapazes, observa-se que a pressão entre pares do mesmo género é também muito evidente, mais do que quando a interação acontece apenas entre raparigas, revelando-se situações em que os fracos desempenhos masculinos são equiparados aos femininos [uma rapaz diz a outro rapaz que falha um golo: pareces mesmo uma menina] delineando reações de “risota”, “troça” e “desprezo”. Refere Corrigan [2] que a masculinidade tem como alvo a representação de um corpo forte e de uma dureza, geralmente alocada no desporto, que está envolta na competição e numa agressividade consentida. O desempenho feminino é subvalorizado e revela-se também quando as equipas de trabalho se constituem. Quando o professor concede a alunos/as, a decisão de escolherem os elementos que devem compor as suas equipas nas várias atividades, os rapazes escolhem primeiramente outros rapazes para a sua equipa, e a tendência é percecionarem as raparigas como “últimas opções.” Por outro lado, quando são as raparigas a decidirem quais os elementos das suas equipas, as opções não são tão evidentes, pontuando entre rapazes e raparigas, e não se notando um padrão de inclusão do género feminino.
Estes registos tornam notório, o quanto as crianças identificam e reproduzem comportamentos de género, patente no modo como interagem e percecionam os outros enquanto “fortes” ou “fracos”.
O que ganhamos quando os currículos ocultos determinam fortes e fracos segundo o género e reproduzem a cultura dominante?
O oculto restringe as possibilidades de aprendizagem, de obtenção de melhores resultados, de novas aspirações e de diferentes perceções sobre o próprio corpo, sobre a própria identidade, sobre o corpo e a identidade do outro. O oculto restringe as possibilidades de as desigualdades entre rapazes e raparigas não estarem condicionadas à partida. Dar visibilidade à questão da igualdade de género nos currículos oficiais de ensino deve ser uma preocupação pertinente desde a pré-primária até à formação académica. Constar com mais solidez na formação docente deve ser emergente.
Não deixemos que reclamar igualdade entre homens e mulheres recaia na premissa redutora de encarar singularidades como padrões, de dizer que uns têm que ser iguais aos outros nas suas especificidades. Não. Não é esse o alerta que fica.
O que se pretende é que rapazes e raparigas tenham as mesmas oportunidades de aceder ao desporto e de praticá-lo ao longo das suas vidas. Que as raparigas não tenham mais que não conseguir praticar futebol, porque não existem clubes para elas; que as raparigas não tenham mais que serem “as machonas” quando são apenas boas atletas; que os rapazes que praticam ballet, não tenham que ouvir dizer que são “uns maricas.”
O que se pretende é que reclamar a igualdade de oportunidades no acesso à prática desportiva para homens e mulheres, não fique aqui, como apenas isso, que seja também reflexo para a educação, para a cultura, para o trabalho, para a participação na vida pública.
Notas:
[1] Louro, G. (2000). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica.
[2] Corrigan, P. (1991). Making the boy: meditations on what grammar school did with, to and for my body. In Henri Giroux (org.), Postmodernism, feminism and cultural politics. Nova York: State University of New York Press, p.196-216.