Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime
Título do artigo: Divulgação ou ficção científica?
Autor: António Pedro Dores
Filiação institucional: Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Lisboa, Portugal
E-mail: Antonio.Dores@iscte.pt
Página pessoal: http://iscte.pt/~apad/novosite2007
Palavras-chave: segredos sociais, prisões, teoria social, ciência.
Segredos das Prisões [1], recém-publicado, foi pensado como um livro de divulgação científica de uma ciência que ainda não existe.
A propósito da pseudo-invisibilidade do tráfico de seres humanos [2], da discutível visibilidade da violência entre crianças e jovens nas escolas [3], da delinquência juvenil [4], da violência doméstica [5] ou a respeito de quem guarda os guardas [6], a questão dos segredos sociais tem sido muitas vezes levantada no Barómetro Social, na secção Direito, Justiça e Crime. Mas não está conceptualizada.
Pela experiência de quem procura produzir uma tal conceptualização, por exemplo, organizando formas de des(en)cobrimento dos segredos sociais que impedem a visibilidade dos abusos sexuais de mulheres e crianças e dos abusos da justiça criminal e das prisões (ligados entre si, objectivamente, pela regra universal adoptada pelos presos em todas as culturas carcerárias de fazer justiça pelas próprias mãos contra os acusados de tais crimes; mais recentemente ligadas entre si pela proposta de construção de uma justiça transformativa [7]), a repugnância sentida por parte importante dos sociólogos confrontados com tais exercícios [8] não pode ser interpretada nem como uma reacção pessoal, nem como efeito de escola, nem como uma opção política. Tanta coincidência só pode ser compreendida através de uma variável atrás de cada um e atrás também das suas diferentes opções. A causa está na própria teoria social que todos partilhamos.
A comunidade sociológica não está disponível para reconhecer um trabalho de apresentação para o público do conceito de segredos sociais, antes de ele ser reconhecido oficialmente por ela própria. O segredo social, apesar de ser um conceito usado pelo menos nas subdisciplinas sociológicas do direito, justiça e crime – nomeadamente para tratar dos testemunhos falsos e das conspirações em torno dos julgamentos e das vidas encarceradas por teias privadas ou públicas, de que o tráfico de drogas dentro das prisões é exemplo bastamente conhecido e ignorado para todos os fins práticos [9] – não é tratado formalmente. Desse modo, o efeito prático é semelhante à estratégia seguida nas prisões para encobrir o que lá se passa dentro do escrutínio público e político: censura e auto-censura de qualquer tipo de raciocínio sobre o assunto. Incluindo perseguição política e judicial a quem infrinja tal lei tácita, em particular activistas de direitos humanos. O que torna o tratamento das questões prisionais uma actividade perigosa para a carreira de quem a desenvolva, a menos de haver o cuidado de assegurar, junto das autoridades competentes, responsáveis pela condução das políticas de silenciamento, os limites das indagações, para que não haja problemas.
Esta situação é sobretudo perigosa para quem está preso ou trabalha nas prisões. E tem a vantagem de definir muito bem os limites da capacidade científica das teorias sociais, no seu formato actual. A conceptualização do que sejam os segredos sociais é ela própria um tabu, um segredo aceite e alimentado pela teoria social actual. O que a revela como uma actividade científica coxa, ideologicamente condicionada para se sentir inferior às ciências duras. Entendido por dureza a capacidade de impor os interesses científicos aos interesses políticos (judiciais e religiosos) como forma de des(en)cobrir o que esteja escondido por estratégias ideológicas. Luta pela transparência, não se entendam mal as palavras, que está longe de representar o paraíso na terra. É apenas a luta da ciência.
No caso dos segredos das prisões, a teoria social actual reforça “cientificamente” a política de censura e repressão penitenciária, ao não reconhecer nenhuma teoria dos segredos sociais – descartada como teoria da conspiração – e limitando os esforços de construção cognitiva nestas áreas. Para acabar com as dúvidas sobre a cientificidade das sociologias, e de outras ciências sociais, aqui está um cabo das tormentas, quiçá o principal: desfazer o nó da recursividade dos segredos sociais e das cumplicidades ideológicas que os mantêm firmes.
A primeira atitude a tomar, animados pelos tempos de transformação social global que vivemos, é assumir para nós próprios, enquanto profissionais e enquanto aspirantes a cientistas: as ciências sociais não serão ciências enquanto não prescindirem de se auto-adjectivarem. Os físicos e os biólogos não se dizem cientistas naturais: dizem-se simplesmente cientistas. Ora, se os sociólogos um dia hão-de poder estar seguros de serem real e plenamente cientistas, esse dia será anunciado quando poderem dizer de si mesmo serem cientistas, simplesmente. Tornar as ciências sociais em ciências – talvez mais pobres que as outras, mas ciências – significa assumir serem os próprios cientistas quem vai lutar para derrubar os tabus ideológicos e epistémicos que enquadram a sua actividade. E, com profissionalismo, adoptarão uma deontologia de contribuir para o bem- estar das pessoas, das sociedades, da humanidade, contra as malfeitorias – nomeadamente encobertas pelos segredos sociais – que possam ser des(en)cobertas.
A vocação do sociólogo deixará de ser paralela ao do político, como a formulou Max Weber em conferências célebres. Deverá passar a ser transversal e autónoma das políticas conjunturais, concentrando as suas energias na natureza social dos seres humanos, enquanto resultado da evolução da vida na Terra e enquanto espécie a quem está imposta a capacidade recursiva, cf. Corballis (2011), isto é, a necessidade de produzir Direito para combater os sentimentos de insegurança existencial e de injustiça.
Há muito trabalho a fazer para explicar porque é que as sociedades capazes de produzirem rendimentos mais iguais entre as pessoas resolvem, ao mesmo tempo, muitos dos problemas sociais vividos nessas sociedades, Wilkinson e Pickett (2009). É indispensável reclamar, com Stiglitz, Sen e Fitoussi (2009), a produção sistemática de dados sobre rendimentos das famílias e sobre a pegada ecológica, para avaliar sistematicamente a situação social. Como é preciso compreender porque é que a teoria social parte da convicção de as sociedades modernas serem as mais perfeitas de todas, cujas imperfeições só podem ser ultrapassadas com mais modernidade, quando as desigualdades sociais não param de crescer e, portanto, ou as constatações de Wilkinson e Pickett estão erradas ou os problemas sociais estão a acumular-se com a modernização.
O segredo das prisões é, precisamente, o cativeiro de bodes expiatórios prontos a serem usados politicamente [10] quando é necessário: e cada vez é mais necessário, como se pode perceber pelo aumento global do número de prisioneiros.
Bibliografia:
Corballis, Michael C. (2011) The Recursive Mind – The Origins of Human Language, Thought, and Civilization, Princeton University Press.
Dores, António Pedro e José Preto (2013) Segredos das Prisões, Cascais, RCP edições.
Holloway, John (2003) Change the World Without Taking Power – The Meaning of Revolution Today, Pluto Press.
Stiglitz, Joseph E., Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi (2009) Measurement of Economic Performance and Social Progress, Presidência da República Francesa.
Wilkinson, Richard e Kate Pickett (2009) The Spirit Level – why more equal societies almost always do better, Penguin.
Notas:
[1] http://iscte.pt/~apad/ACED/ficheiros/biblioteca.html.
[2] http://barometro.com.pt/archives/366
[3] http://barometro.com.pt/archives/495
[4] http://barometro.com.pt/archives/753
[5] http://barometro.com.pt/archives/809
[6] http://barometro.com.pt/archives/928
[7] http://www.generationfive.org/tj.php
[8] http://home.iscte-iul.pt/~apad/estesp/trilogia.htm
[9] Falar neste contexto de exploração do trabalho e de alienação, cf. Holloway (2003), curiosamente ou não, seria controverso, dada a visibilidade política da questão a nível dos debates partidários e o alinhamento político das diferentes correntes de sociologia.