Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime
Título do artigo: Violência doméstica, dinheiro e moral: a indemnização das vítimas
Autor: Tiago Ribeiro
Filiação institucional: Sociólogo
E-mail: tmcribeiro@gmail.com
Palavras-chave: violência doméstica, indemnização, justiça.
O fenómeno da violência doméstica contra as mulheres tem vindo a ganhar uma visibilidade crescente nas sociedades contemporâneas, beneficiando tanto de um aumento dos estudos académicos dedicados ao aprofundamento e complexificação do tema, como da sua projecção mediática e da consciência pública da sua gravidade e censurabilidade social. As políticas públicas de defesa e protecção das vítimas têm acompanhado este percurso, densificando-se os instrumentos legislativos de combate e prevenção do crime, aperfeiçoando-se os planos de formação dos operadores de justiça, sensibilizando-se os profissionais de saúde e ampliando-se as preocupações com o estatuto da vítima no processo. No campo dos estudos sociais do direito e da justiça, a problemática da reparação moral e corporal das vítimas permanece, no entanto, secundarizada face às abordagens criminológicas do fenómeno, centrando-se grande parte da investigação científica na resposta penal dos tribunais, nas condições sociais potenciadoras do crime e nos modelos e instituições de assistência às vítimas. O direito a uma indemnização justa e célere é, todavia, um indicador sociológico único sobre o valor do corpo, da vida e da dignidade nas sociedades contemporâneas. Compreender os pressupostos indemnizatórios, as suas formas de cálculo e os modos de produção de relevância ou irrelevância dos danos constitui, assim, uma tarefa essencial para decifrar e desconstruir as concepções puras e despolitizadas da lei e das decisões judiciais, encarando-as como processos criadores ou reprodutores de diferentes formas de dominação social, de que a violência doméstica contra mulheres constitui exemplo particularmente elucidativo e prisma a partir do qual é possível ampliar a discussão para os diferentes perfis da relação entre justiça, dano e desigualdade.
Sempre que os títulos dos jornais contemplam o termo indemnização, é comum encontrarmos relatados dois tipos de casos: ou a denúncia de montantes miserabilistas [1] ou o espanto com uma espécie de euromilhões. Há clivagens flagrantes no interior da sociedade portuguesa que devem ser questionadas porque, entre outras coisas, evidenciam graus desiguais de reconhecimento e valorização das pessoas e dos danos, que não devem isentar de responsabilidade o poder judicial.
Em 2008, o colunista Daniel Oliveira foi condenado pelo Tribunal do Funchal ao pagamento de uma indemnização no valor de dois mil euros a Alberto João Jardim, na sequência de, no seu espaço semanal na imprensa, lhe ter chamado “palhaço rico”, o que, como refere o acórdão, “causou ao assistente incómodo e stress” [2]. Já em Novembro de 2010, é decidido no Tribunal Judicial de Felgueiras um caso de violência doméstica em que, de acordo com os factos provados, “o arguido agride fisicamente, insulta e ameaça de morte a ofendida […] seguramente desde pelo menos o ano de 1969 até pelo menos Outubro de 2009, sempre de forma sistemática, reiterada e sucessiva”. Este processo envolveu episódios como a hospitalização da vítima, a saída de casa em condições difíceis e a sua debilitação física e psicológica, concluindo-se a “submissão a toda uma vida de humilhações, achincalhamentos, comportamentos desprezíveis, atentatórios da dignidade de qualquer ser humano”. O arguido foi condenado ao pagamento de uma indemnização no valor de mil euros – metade do valor fixado no caso Daniel Oliveira-Alberto João Jardim. E mil euros foi exactamente a mesma indemnização por danos não patrimoniais concedida, dez anos antes, ao comprador de um apartamento de férias pelo facto de não ter podido estreá-lo em Agosto, como inicialmente previsto – problema que, de acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, lhe terá provocado stress [3].
Estas decisões judiciais, embora não resultem de uma amostra representativa, permitem-nos perceber o quanto os montantes finais constituem pistas sobre os modos de diferenciação e hierarquização social, intimamente relacionados com concepções culturais e ideológicas mais amplas sobre o que é e o que deve ser a justiça numa determinada sociedade. A reparação dos danos causados pela submissão a um processo de violência doméstica constitui assunto de segunda categoria, quando comparado tanto com outras formas de produção de prejuízo, como com o estatuto de outros bens jurídicos lesados, que, pelo seu valor acrescido na hegemonia política e simbólica das sociedades contemporâneas, têm merecido soluções indemnizatórias mais robustas à luz de argumentos menos convincentes.
As perspectivas críticas e feministas do direito são cruciais à análise dos fundamentos ideológicos e simbólicos que modelam o factor equidade e condicionam a economia jurídica do dano. O artigo 494.º do Código Civil identifica o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado (a par de outras circunstâncias relevantes) como critérios a ponderar na fixação da indemnização por danos não patrimoniais. Os recursos económicos do agressor não são um aspecto menor na óptica da eficácia da decisão judicial. Quando o pedido e a fixação da indemnização são bem sucedidos – o que nem sempre acontece –, as situações de incumprimento indemnizatório constituem um problema não raras vezes irresolúvel no âmbito dos processos de violência doméstica. Ocorrem quando o arguido demandado, por incapacidade económica ou por via de expedientes diversos, não paga, como judicialmente determinado, a indemnização a que a vítima tem direito. O Regime de Concessão de Indemnização às Vítimas de Crimes Violentos e de Violência Doméstica prevê a possibilidade de ser atribuído um adiantamento indemnizatório às vítimas de violência doméstica que se encontrem numa situação de “grave carência económica em consequência do crime”, não podendo o montante exceder o equivalente mensal ao salário mínimo nacional. As limitações financeiras e o carácter meramente assistencialista deste fundo não permitem que lhe seja imputada a função indemnizatória por que é designado. Pelo contrário, trata-se de uma resposta pública às vítimas de violência doméstica que, para além de paralisada até há bem pouco tempo, se revela incapaz de reparar os danos que foram devidamente reconhecidos em sede judicial.
Se a violência doméstica é um problema de ordem estrutural que agride o interesse colectivo, não caberá ao Estado uma intervenção reparatória que esteja à altura do prejuízo sofrido pelas vítimas? Será que a sua persistente conotação com a intimidade faz dos danos um assunto privado insusceptível de avaliação pecuniária? Ou será que o conceito de dano moral se encontra refém da anatomia da esfera pública, tornando a justiça incapaz de pensar o privado como um resultado de relações de poder moralmente construídas?
Notas
[1] Campos, Carlos da Silva (2004), “O país das indemnizações miseráveis” in Verbo Jurídico, acessível em http://www.verbojuridico.com/doutrina/civil/indemnizacoes.html.
[2] Cf. http://arrastao.org/1159744.html.
[3] Acórdão citado em Braga, Armando (2005), A reparação do dano corporal na responsabilidade civil extracontratual. Coimbra: Almedina.
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