O nome das coisas

Dimensão analítica: Desporto

Título do artigo: O nome das coisas

Autora: Teresa Marinho

Filiação institucional: Faculdade de Desporto da Universidade do Porto

E-mail: tmarinho@fade.up.pt

Palavras-chave: Homem-espuma, ética, dignidade, desporto.

Vivo dolorosamente estes tempos que correm. Perturba-me a injustiça, a corrupção e a leviandade de certa gente que por aí vagueia, julgando-se detentora de poder, de palavra e de razão. Gente que maltrata, que avilta e que agride todo o ser humano à sua volta, olhando de soslaio a miséria e gracejando da dor do outro, o mesmo que vive do suor do seu trabalho e da imposição mafiosa de regras que só se aplicam a uns quantos, aos mesmos de sempre, enfim, aos chicos-espertos deste mundo e do outro. Sim, porque viver dá trabalho. Vivemos em constante apneia, com medo de dizer a palavra que nos atirará para o abismo. Em silêncio, vamos travando uma luta com a pessoa que vive dentro de nós. Sentimo-nos cobardes por não sermos capazes de ripostar, de bater o pé, de combater esta inércia que se apodera de nós. Somos aquele povo caricaturado por Guerra Junqueiro na sua Pátria, a mesma que continua à espera de uma poção mágica para se fortalecer e dar cor ao saudosismo de um futuro que parece tardar na sua concretização: “Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai”. [1]

Parece ser esta a nossa condição. Calamos quando nos mandam calar, respiramos quando nos mandam respirar, somos quando nos mandam ser. Fantoches nas mãos de uns senhoritos que decidem arrogantemente o nosso futuro, sem pedir licença, sem perceber de esforço, de labuta, de fadiga, de respeito ou de amor a um ideal, que se sente por se saber edificado no coração de quem sabe que vale a pena lutar dignamente por um outro sentido, por uma outra aventura existencial. O nosso espaço é invadido por uma demência geral que se contenta com a catástrofe e o embuste, a repressão e a tirania, a indecência e tudo o que é imoral. Rapidamente tudo se transformou em lucro, em mercadoria, num espaço desértico de emoções em crescendo. Vive-se a era do vale tudo, da bestialidade e da “cunha”, que deita por terra o sistema de meritocracia para dar lugar à insensatez de criaturas sem cátedra, decência e educação.

Vive este país de escândalos, de histórias de pudor e de penas que prescrevem e que deixam à solta criminosos, biltres e corruptos, que passeiam pelo espaço público com um sorriso de escárnio e com um discurso de falsa modéstia e de inculpabilidade que contamina o ambiente e insulta a decência de quem os ouve e se sente agrilhoado nesta caverna de fraude, de pedantice e de justiça encapotada. Servem estes personagens de exemplo aos nossos jovens, incitando-os através de ações sibilinas e discursos opacos a fazer da trapaça um modo de vida:

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas.

Sophia de Mello Breyner Andresen, O velho abutre [2]

Lançam os dados e decidem a nossa sorte, sem cuidar da nossa dignidade, sem se preocuparem com os nossos sonhos e com o nosso sentir. Para eles, não passamos de pedras no caminho que se atiram para a berma porque causam desconforto. Somos descartáveis, somos um número, somos cobaias que sofrem experiências neste laboratório impessoal, frio e pleno de agonia.

Esta nova forma de estar-no-mundo parece que vem para ficar. Parece ganhar cada vez mais adeptos. A presença deste homo demens assume-se vertiginosamente. Avoca a forma de uma ética degradante e de uma imagem do outro e da vida reveladora de irresponsabilidade e decadência moral. Esta alienação alastra-se desmesuradamente, porque visa achincalhar o humanismo que ainda persiste, o mesmo que respira por uma pequena fenda e que se recusa a abanar servilmente a cabeça a esta escravidão, a este tempo sem sentido. Colocam-nos a mordaça e incitam-nos a viver no medo. Obrigam-nos a caminhar alinhados, a obedecer à vileza e a ser coniventes com a injúria, sob pena de nos rasgarem a carne e nos estilhaçarem os ossos com a dura realidade de uma sociedade tecnocrata, que procura estupidificar em vez de educar, que busca empedernir em vez de sensibilizar, que pretende magoar em vez de cuidar.

O desporto também tem vindo a sofrer ataques e a ser palco de atitudes pouco dignas e exemplares. Em nome do amor ao dinheiro, da excessiva ambição, da ferocidade competitiva e do clubismo insano e irrefletido, atletas, treinadores, dirigentes, comentadores, adeptos e os demais parecem esquecer-se do essencial: do sentido ético e estético que brota do desporto, dos valores que o sublimam, do seu apelo à transcendência e à disciplina, que forma homens e que os educa a viver íntegra e plenamente. O desporto que deveria ser preservado como um campo de honestidade, de respeito e de deleite, está a ser banalizado e agredido por um bando de gente que se dedica a dar-lhe um outro significado, retirando-lhe beleza e seriedade. Já afirmava Saint-Exupéry que os dois grandes inimigos da alma são o dinheiro e a vaidade, que subtraem ao mundo o humanismo, a excelência e a probidade.

Tenho pena que o desporto esteja a ser utilizado para outros fins que não aqueles que expressam os seus verdadeiros valores e a sua real pretensão. Tenho pena que as ilegalidades, as imposturas e a manipulação estejam a apoderar-se do desporto. Que o depreciem e tentem dar-lhe outro significado, reduzindo-o a um estatuto de politiquice brejeira, de posturas toscas e de comentários a roçar a mediocridade, que tentam camuflar a ética do treino, do esforço e da perseverança que o desporto simboliza. Urge despertar desta sonolência e cegueira que se abatem sobre o desporto, começando por senti-lo e vivê-lo com assaz intensidade. Voltar o nosso olhar para o ideal grego de theoria (contemplação), aretê (virtude) e kalokagathia (belo e bom), com o sentido de um forte apelo ao combate da irracionalidade e do esbatimento humano.

Somos, sem sombra de dúvida, o homem-espuma de que nos fala Padre Manuel Antunes [3]. Aquele homem, cuja pobreza de espírito é levada pela maré, flutuando na desgraça e sumindo sem deixar rasto. O mesmo homem que não cria raízes e que por aí vai levitando, sem rumo, densidade ou expressão. Não nos esqueçamos que somos feitos de razão, palavra, memória e coração, ingredientes fundamentais para nos demarcarmos do tal “sonâmbulo que dança no abismo” esculpido por Nietzsche na sua mais pura intenção.

Bibliografia

[1] Junqueiro, Guerra (2010). Pátria. Lisboa: Nova Veja

[2] Andresen, Sophia Mello Breyner (1976). Livro Sexto. Lisboa: Moraes

[3] Antunes, Padre Manuel (2005). Paideia: Educação e sociedade. Tomo II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Esta entrada foi publicada em Saúde e Condições e Estilos de vida com as tags , , , . ligação permanente.