Da sonolência do consumo à obsolência do “trabalho” – Parte II

Dimensão analítica: Mercado e Condições de Trabalho

Título do artigo: Da sonolência do consumo à obsolência do “trabalho” – Parte II

Autor: Pedro Jorge Pereira

Filiação institucional: Projecto EDUCACES / Independente

E-mail: ecotopia2012@gmail.com

Palavras-chave: Globalização, cidadania, trabalho

Em prl do crescimento económico, do maior lucro possível (que supostamente nos beneficia a todos), em prol de fórmulas e “receitas” desenhadas por tecnocratas da economia e que nem os próprios conseguem muitas vezes perceber ou explicar, num espaço de tempo relativamente curto, basicamente tem-se vindo a desenhar uma nova ordem de contornos inimagináveis há alguns anos atrás.

Em nome do neoliberalismo os governos dos diversos países têm vindo a permitir e até apoiar o abandono da própria estrutura produtiva dos países mais desenvolvidos e a sua transferência para países ditos em desenvolvimento. Apesar do impacto económico que a perda de postos de trabalho implica, sobretudo ao nível das economias locais, apesar do impacto ecológico de estarmos a “trazer” do outro lado do mundo bens básicos que poderiam e deveriam ser produzidos localmente, apesar da forma selvagem como bens e serviços públicos essenciais têm vindo a ser privatizados e levados para o domínio corporativo, tudo se justifica e legitima desde que … estejamos a crescer economicamente.

Com o pretexto de podermos competir em termos de condições laborais (entenda-se desregulamentação quase completa) com as designadas economias emergentes (e a única forma de a esse nível sermos realmente “competitivos” seria estarmos em “pé de igualdade” com aquilo que já se faz sistematicamente na própria China e “economias afins” que é criar condições tantas e tantas vezes de semi-escravatura) o “trabalho” tem vindo a tornar-se cada vez mais precário, cada vez mais “descartável”, cada vez mais tido como um custo produtivo demasiadamente elevado que urge reduzir de todas as formas possíveis e imagináveis. Se possível eliminar até. De certa forma é o que chamam da “externalização dos custos” [1].

A lógica é simples: as grandes corporações multinacionais “descartam-se” cada vez mais (desde logo com a subcontratação de empreiteiros locais nas zonas de produção e exportação geralmente em países subdesenvolvidos dos seus trabalhadores) para concentrarem todos os seus investimentos na “construção de imagem”, nas relações públicas. O que importa é antes de tudo o mais, ou exclusivamente, a “imagem”, a aura mítica que se cria, muito mais do que aquilo que realmente se faz ou se é enquanto empresa e marca.

Sem nos estarmos a debruçar muito em detalhe sobre todas as inúmeras reflexões sócio-políticas que se poderiam efectuar, o que podemos de alguma forma concluir, sem incorrer em grandes polémicas, é que foi no século XX que se deram alguns dos mais notáveis avanços ao nível da melhoria das condições de trabalho e de protecção social, de uma forma generalizada, da maior parte da população dos países mais desenvolvidos. Direitos até aí quase impensáveis como o direito a férias, a criação do “fim-de-semana”, segurança social, igualdade de direitos e oportunidades, associação sindical, regalias e protecção social e laboral, foram quase todas “inovações” e direitos muito arduamente conquistados pelos trabalhadores no século XX. Não é que eles nunca tenham existido antes, mas de uma forma tão generalizada à maior parte da população, pelo menos no dito “Ocidente, isso sim, foi algo de muito novo que o século XX nos veio trazer.

O que o neoliberalismo nos está a trazer é uma pilhagem e destruição sistemática desses direitos tão arduamente conquistados.

O “trabalho” tem estado a viver um violento processo de precarização e tem-se vindo a tornar num “facto produtivo” descartável nas mãos dos poderosos agentes económicos capitalistas.

Aquilo que Klein [2] designa dos “McEmpregos”  tem vindo a tornar-se a principal realidade laboral dos jovens em todo o mundo.

O impacto económico e social a nível local dessa tendência global é enorme. Sendo os rendimentos da maior parte da população, da designada “força de trabalho”, cada vez mais parcos é toda a vitalidade económica das suas comunidades que se encontra ameaçada.

É, aliás, importante salientar que também nos próprios países ditos desenvolvidos, existem, e cada vez mais, enormes disparidades sociais e o próprio consumo não decorre de forma homogénea mas sim, e cada vez mais, é ele próprio sintomático da existência de estruturas socais piramidais, com enormes disparidades entre o topo e as bases.

É importante pensar que, a meu ver, a dita crise económica resulta não de uma mera fatalidade ou contexto económico inopinado mas muito mais do “desastre” de determinadas políticas económicas “de choque” e paradigmas de pensamento e acção neoliberal que têm vindo a ser ferozmente implementados à escala global.

Como é que alguma sociedade que não produz sequer o que necessita poderá alguma vez aspirar a um desenvolvimento sustentável? Ou uma sociedade que manda produzir em larga escala o que não necessita?

Como é que alguma sociedade, economia, nação se poderá desenvolver realmente sem a existência das melhores condições laborais para os seus trabalhadores? Sem uma plena realização profissional dos seus cidadãos e sem a existência de oportunidades para estes poderem desenvolver o seu melhor potencial?

Será que o indivíduo essencialmente “Consumidor” (e em geral passivo), e cada vez menos “Produtor” se tornou numa realidade irreversível e intrínseca das ditas sociedades “Ocidentais”?

Será que chegamos a um ponto “de não retorno” onde tudo o que nos resta é ficarmos sentados à espera, assistindo obedientemente a tudo o que está a passar sem esboçarmos qualquer acção ou reacção à “ordem estabelecida?

Pessoalmente continuo a acreditar no génio criativo do ser humano, nomeadamente para projectar e criar uma nova ordem mundial inspirada em valores de cariz bem mais humanista, ético e fraterno.

Pessoalmente continuo a acreditar na capacidade do indivíduo, e dos cidadãos reunidos em associações, ONG´s, cooperativas e grupos informais, ser membro activo do processo produtivo, assim como poder possuir o conhecimento e controlo desse mesmo processo. Zelando para que ele possa, ao invés do que tem vindo a acontecer em larga escala, ser de facto benéfico para a sociedade no seu todo. O que implica não danificar os ecossistemas naturais e humanos. O que implica permitir que o trabalho seja respeitado, valorizado, protegido e capaz de gerar bem-estar social e económico para todos os trabalhadores.

Pessoalmente duvido que uma tal ordem possa partir dos mesmos centros de poder e decisão que têm vindo sistematicamente a criar precisamente o contrário daquilo a que se deve aspirar. Por isso parece-me óbvio que a criação de uma tal ordem tem necessariamente que partir de todos os indivíduos livres e simples que ainda têm capacidade de acreditar nos seus sonhos e em que “outro mundo é possível”, desde logo sonhando-o de forma diferente.

Notas

[1] Ortega, In Sam We Trust citado em Klein, Naomi. (2000), No Logo – O poder das marcas. Lisboa, Relógio D`Água.

[2] Klein, Naomi. (2000). No Logo – O poder das marcas. Lisboa, Relógio D`Água.

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