Dimensão analítica: Mercado e Condições de Trabalho
Título do artigo: Da sonolência do consumo à obsolência do “trabalho” – Parte I
Autor: Pedro Jorge Pereira
Filiação institucional: Projecto EDUCACES / Independente
E-mail: ecotopia2012@gmail.com
Palavras-chave: Globalização, cidadania, trabalho
“As grandes firmas de relações públicas, de publicidade, de artes gráficas, de cinema, de televisão… têm, antes de mais, a função de controlar os espíritos. É necessário criar “necessidades artificiais” e fazer com que as pessoas se dediquem à sua busca, cada um por si, isolados uns dos outros. Os dirigentes dessas empresas têm uma abordagem muito pragmática: “É preciso orientar as pessoas para as coisas superficiais da vida, como o consumo.” É preciso criar muros artificias, aprisionar as pessoas, isolá-las umas das outras.” [1]
Vivemos numa sociedade designada “de Consumo”. Como se o consumo tivesse assumido, por si só, uma aura e importância primordial em tudo aquilo que define a nossa sociedade enquanto tal. E a realidade é que – num processo que será tudo menos aleatório ou meramente circunstancial – ao nível cultural, político e ideológico é precisamente isso que tem vindo a suceder e a conseguir-se que suceda: as múltiplas dimensões sociológicas do indivíduo e, por inerência, de todo o colectivo social têm vindo de forma sistemática e quase até “natural” a ser reduzidas e um mínimo denominador comum: O Consumo. Enquanto dogma, valor e até instituição.
O consumo possui hoje, portanto, um significado prático e sociológico profundo em todo um contexto de neoliberalismo hegemónico à escala mundial: muito para além da sua função “pré-histórica” de satisfação de necessidades essenciais, actualmente as supostas necessidades dos indivíduos – necessidades, desde logo, de forma frequente artificialmente criadas e ampliadas até à exaustão pela poderosa indústria publicitária e departamentos de marketing das principais corporações multinacionais – são o pretexto ideal para reproduzir a disseminar o consumo enquanto instituição teológica, dogma cultural e mecanismo prático de alienação colectiva, mas por via de um crescente processo de feroz competição e estratificação individual materialista. [2]
Num contexto em que os mecanismos susceptíveis de modificar e configurar toda a conjuntura mundial se encontram, de uma forma ou de outra, apropriados por um conjunto restrito de poderosas corporações – detidas, por sua vez, por um grupo muito restrito de indivíduos: “A ONU calcula que o conjunto das necessidades básicas de alimentação, água potável, educação e cuidados médicos da população mundial poderia ser coberta com uma taxa de menos de 4% sobre a riqueza acumulada das 225 maiores fortunas”. [3] – e quando os mecanismos democráticos convencionais são cada vez menos representativos e algo estéreis, numa sociedade que tende para a homogeneização – através desse propósito comum a todos que é o de consumir -, um dos poucos fenómenos que parece ainda atribuir alguma importância ao indivíduo comum é, precisamente, o consumo. Enquanto consumidores somos teoricamente bajulados por todo o género de promoções e mimos publicitários, técnicas e tácticas de propaganda que, supostamente, existem para nosso benefício e suprema felicidade. Isto porque “nós merecemos”. A apologia é quase sempre a mesma: A exaltação da liberdade individual de (suposta) escolha.
Ao mesmo tempo que esta “era” é celebrada como a era das mil e uma oportunidades e possibilidades de escolha, a realidade é que toda a cadeia produtiva desde a extracção das matérias primas até ao próprio processo de transformação, desde o transporte até ao cada vez maior “afunilamento” dos canais de distribuição, se encontra, cada vez mais, controlado pelas mesmas empresas que de certa forma nos excluem (enquanto cidadãos conscientes, informados e reivindicativos) desse mesmo processo. Dito por outras palavras: Sim, podemos ir ao “shopping” e escolher um produto entre as centenas de marcas disponíveis. Mas, por um lado, essas marcas são cada vez mais propriedade de um conjunto cada vez mais restrito de corporações multinacionais e, por outro lado, ao mesmo tempo que essas mesmas marcas despendem milhões e milhões de euros em seduzir, influenciar e até manipular “consumidores”, continuam a querer revelar muito pouco das condições de produção de muitos dos seus produtos, do impacto sócio-ecológico dos mesmos, das condições de comercialização destes (qual, por exemplo, a percentagem do lucro final que vai realmente para os produtores) e em geral da sua própria política e filosofia que se poderá reduzir em muitos casos a uma máxima muito simples: o maior lucro possível ao menor custo possível. E o “trabalho” é visto meramente como um custo que urge “a todo o custo” reduzir e até, se possível, eliminar ou o mais próximo disso possível.
Aturdidos que estamos nesse “propósito colectivo” e, ao mesmo tempo, ferozmente individualista que é o de consumir, a nossa consciência social, humana e ecológica é, sobremaneira, alienada e as próprias consequências inerentes ao consumo, sobretudo considerando a escala a que este se processa, e os efeitos sociais, laborais e ecológicos das mesmas, estão muito longe de ser percepcionadas por todos nós, elos cruciais que somos nas relações existentes entre as deploráveis condições produtivas nos sítios mais remotos do mundo (destruição de habitantes naturais, situações de exploração laboral, mecanismos económicos de neocolonialismo). Como se o nosso “consumismo ocidental” e o nosso estilo de vida individualista e essencialmente materialista (axiomas cruciais do aparelho ideológico capitalista), devessem funcionar como “farol” e inspiração para o resto da humanidade que a mais não deve aspirar do que a consumir como nós.
Em toda esta reflexão há um aspecto crucial e fundamental a ser analisado: a “obsolência” do factor trabalho.
No fundo a mensagem propalada pelo sistema é muito simples: Já não temos que nos preocupar com trabalhar, com produzir. Podemos simplesmente usufruir de toda a prosperidade desta nova ordem económica e cumprir o nosso papel enquanto consumidores vorazes. O consumo é bom para o crescimento económico. O crescimento económico, propagam quase religiosamente, há-de repercutir-se de uma forma ou de outra num certo bem-estar social generalizado. Por isso o dogma mais enraizado em todo o discurso neoliberal dominante, desde logo nos próprios meios de comunicação social – também eles obedientes, em larga medida, a uma poderosa lógica meramente comercial – é o de que tudo o que importa é crescer economicamente. Tudo o que importa é produzir em larga escala, consumir em larga escala, sem que se saiba muito bem como (com que impactos), porquê (em que é que isso realmente nos beneficia ou nos torna mais felizes) e para quem (quem realmente continua a acumular e acumular fortunas no grande “casino” capitalista global).
Notas
[1] Chomsky, Noam (2002), Duas horas de lucidez, Mem Martins: Editorial Inquérito.
[2] Baudrillard, Jean (1996), A sociedade de consumo. Lisboa, Edições 70.
[3] Ramonet, Ignacio (1998), The politics of hunger. [Em linha]. [Consultado em 10/01/2003], Disponível em URL: <http://mondediplo.com/1998/11/01leader>.