Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida
Título do artigo: Entre o perfeito e o possível: é preciso negociar regras de pertença e cidadania para se desinstitucionalizar a doença mental
Autora: Joana R. Zózimo
Filiação institucional: CFE/UC; Pordata/FFMS; SOCIUS/ISEG.
E-mail: joana.zozimo@gmail.com
Palavras-chave: doença mental, desinstitucionalização, cuidado no quotidiano, cidadania.
Em Portugal, as políticas de saúde e doença mental visam, pelo menos desde 1963, o cuidado na comunidade e a desinstitucionalização das pessoas com experiência de doença mental [1]. Pretende-se reduzir a intervenção profissional nos seus desígnios de vida, que retomem a sua individualidade e planeiem um percurso à sua medida. Porém, entender a autonomia de modo literal pode sabotar as possibilidades de quem precisa de maior interdependência. Também, a ideia do sucesso do cuidado da doença mental como dicotomia geográfica – estar fora de uma instituição – sobre-simplifica a complexidade de que se revestem os cuidados e invisibiliza avanços quotidianos. É importante, então, conhecer esse dia-a-dia, o que em Portugal é difícil – os dados oficiais são praticamente inexistentes e há pouco investimento científico nos pequenos mundos do cuidado. Um maior conhecimento destes permitiria aprender do particular para uma visão mais global de como lidar com doenças mentais, demonstrar que a existência destas pessoas não se resume à doença – mesmo num contexto hospitalar-, e como se processam os gestos e hábitos que cuidam.
Por outro lado, quanto mais perene a doença mental, mais consequências tem nas condições de acesso ao que outros (sem doença) acedem, mais importante é intervir na comunidade para que acomode as necessidades de cidadã/os com incapacidade, potenciando o que podem/querem fazer e acautelando o que lhes é difícil. Procurar um equilíbrio continuamente negociado entre não exigir performances impossíveis, nem cortar possibilidades por se considerar incapaz. Daí a importância que assumem os coletivos de cuidado, as tentativas colaborativas de remendar o cuidado, os compromissos alcançados entre o ideal e o possível para solucionar tensões e incluir a perspetiva da pessoa com experiência de doença mental [1; 2].
O cuidado, a cidadania e os direitos humanos requerem uma equipa altamente profissional e a adequada provisão de recursos [3] – não são intuitivos. Assim, num contexto de cuidado à doença mental não é apenas necessária a formação técnica em farmacologia ou psicopatologia, é necessária a prática consciente de auscultar e reconhecer o outro, os seus sonhos, preferências, capacidades – desenvolver contextos que os acomodem, pouco a pouco. É necessário praticar o encontro de vontades, ter recursos humanos e materiais preparados para tal. Um cuidado múltiplo, com regras diversificadas, adaptável às vidas dos utentes, profissionais e famílias, torna-se parte intrínseca da política de pertença e cidadania. E, não obstante o desinvestimento secular na saúde mental em Portugal, isto já é feito quotidianamente [4; 1], em vários contextos de cuidados especializados que já não se dirigem apenas ao controlo dos sintomas, mas também a como ter uma vida boa, pertencer a uma comunidade, exercer direitos e deveres.
A multiplicidade de práticas escapa frequentemente às descrições sobre saúde/doença mental, mas podemos procurá-la na pesquisa qualitativa. Por exemplo, a dificuldade de especializar o cuidado começa em algo tão simples como a ausência de categorias burocráticas de registo das atividades – as que existem são genéricas, obsoletas e variam entre serviços. Isto tem pelo menos três resultados: omite a diversidade e inovação; desmotiva profissionais, pela burocracia para justificar atividades novas; coloca problemas de financiamento de atividades fora da lista. Por outro lado, torna-se evidente como muitas utentes e famílias apenas têm apoio numa crise aguda da doença, o que leva a um treatment gap elevado [5; 6]. A concentração, ainda atual, do tratamento das doenças mentais em torno do hospital, não sendo exclusiva do caso português [7] tem complicações específicas como a falta de instalações físicas, visto que muitos hospitais gerais não foram adaptados para receber serviços psiquiátricos. Não existindo uma política uniforme de provisão de cuidados de saúde mental, alguns Serviços de Psiquiatria e Saúde Mental têm equipas comunitárias, outros não; alguns têm acesso a residências assistidas ou de vida independente; alguns têm estruturas intermédias entre o internamento e a consulta externa.
Assim, pessoas com experiência de doença mental e as suas famílias dependem grandemente do profissional que encontram, dos recursos do serviço da sua área de residência, e da cultura do mesmo. Ironicamente, em alguns casos, a lentidão em que se tem desenvolvido o processo de desinstitucionalização terá deixado alguns utentes numa posição mais precária em relação a cuidados específicos – o que nos obriga a reequacionar considerações definitivas sobre a instituição e a comunidade. Como também outros deram conta [8], embora a filosofia subjacente à reforma do sistema de cuidados à saúde mental se baseie no reconhecimento dos efeitos negativos da institucionalização nas pessoas com experiência de doença mental, a realidade prática das comunidades em que se inserem estas pessoas pode ser um lugar inóspito onde a experiência de doença mental fecha sucessivas portas no campo laboral, familiar ou educativo.
O processo de desinstitucionalização precisa de ser apoiado para se poder dar um salto qualitativo nas políticas de saúde e doença mental, (embora essenciais) não bastam condições para que as pessoas com experiência de doença mental estejam na comunidade e se adaptem às normas de quem não tem uma doença mental. É necessário que possam ser como são e para isso as comunidades têm de negociar as suas próprias normas de pertença, ação e pensamento. Para que possam ser mais do que normais, almejarem mais do que serem normalizadas, é necessário haver “contaminação” entre modos de estar e ser. Estas adaptações permitem a manutenção diária de coletivos de cuidado em que utentes, profissionais, famílias, vizinhos, etc. colaboram para que se possa viver com uma doença mental, mesmo as consideradas graves.
Assim, o processo de cuidado e recuperação deixa de ser definitivo, as reiterações deixam de ser insucessos – podem ser integradas como um momento temporário de vulnerabilidade. Espaços que permitem a negociação treinam as capacidades de adaptação das regras “da comunidade” e deixam entrever como construir uma sociedade de pessoas normalmente diferentes ou diferentemente normais [2]. O bom cuidado é, desejavelmente, um compromisso quotidiano, praticado entre o (perfeito) imaginado e o (presente) possível, nas condições materiais e simbólicas de cada momento.
Notas:
[1] Zózimo, J.R. (2022). Entre o perfeito e o possível. Uma etnografia do bom cuidado na doença mental grave em Portugal. Tese de Doutoramento. Coimbra, FEUC. Acessível em http://hdl.handle.net/10316/100331
[2] Winance, M. (2007). Being normally different? Changes to normalization processes: from alignment to work on the norm. Disability & Society, 22(6), 625–638. doi:10.1080/09687590701560261
[3] Fioritti, A. (2018). Is Freedom (Still) Therapy? The 40th Anniversary of the Italian Mental Health Care Reform. Epidemiology and Psychiatric Sciences, 27, 319–323.
[4] Pols, J. (2004). Good Care – enacting a complex ideal in long-term psychiatry, Tese de Doutoramento, Trimbos-instituut, Utrecht
[5] C.N.S. (2019). Sem mais tempo a perder – Saúde. Lisboa: C.N.S. Obtido de http://www.cns.min-saude.pt/wp-content/uploads/2019/12/SEM-MAIS-TEMPO-A-PERDER.pdf
[6] Silva, M. et al. (2020). Barriers to mental health services utilisation in Portugal – results from the National Mental Health Survey. Journal of Mental Health. doi:10.1080/09638237.2020.1739249
[7] Caldas-de-Almeida, J., Frasquilho, D., Zózimo, J., & Parkkonen, J. (2018). Annual Report 2018 – EU Compass For Action On Mental Health And Wellbeing. European Union. Obtido de https://ec.europa.eu/health/sites/health/files/mental_health/docs/2018_compass_activityreportsummary_en.pdf
[8] Hespanha, P., Portugal, S., Nogueira, C., Pereira, J. M., & Hespanha, M. J. (2012). Doença Mental, Instituições e Famílias – Os Desafios da Desinstitucionalização em Portugal. Coimbra: Edições Almedina.
.
.