Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida
Título do artigo: (Des)Representatividade das mulheres negras no debate sociopolítico sobre saúde sexual e reprodutiva
Autora: Laura Brito, Karla Costa
Filiação institucional: CES-UC; SaMaNe
E-mail: laurabrito@ces.uc.pt, karlacostanutri@gmail.com
Palavras-chave: justiça reprodutiva, mulheres negras, representatividade.
O que significa ser representada/o ou representatividade? Ser representada/o, num sentido amplo, é ser visível. De acordo com o dicionário de Política de Norberto Bobbio [1], representatividade vai além da expressão dos interesses de um grupo, por meio de um representante, é sobretudo, parte da formação dos indivíduos que compõem esse grupo. Estando relacionada, portanto, à subjetividade e à identidade. Assim, aquela/e que não é representada/o é invisibilizada/o subjetivamente, culturalmente e politicamente [2].
Dentro deste debate, a questão étnico-racial tem se destacado nos últimos anos, tendo em vista a crescente demanda de maior representatividade de pessoas racializadas nos diversos espaços sócio políticos. Esta reclamação, faz-se, tanto pelo grito de se tornarem visíveis perante a sociedade, quanto por uma reparação histórica, pois a falta de representatividade nega, menospreza e apaga para as pessoas racializadas a sua própria origem e história [3]. Em Portugal, essa realidade pode ser exemplificada a partir de dois exemplos considerados por nós paradigmáticos da falta de representatividade: o Alto Comissariado para as Migrações, que em 27 anos nunca foi ocupado por uma pessoa racializada ou imigrante e o recente Observatório do Racismo e Xenofobia, dirigido por uma mulher branca e portuguesa, que apesar de próxima a pauta do feminismo, possui pouca experiência quando se refere ao racismo. Ou seja, em ambos os espaços, apesar de serem direcionados a pessoas racializadas e migrantes, não é ocupado por elas, mantendo posições de poder e controle historicamente delegadas a pessoas brancas e nacionais.
Dentro desta realidade, destacamos a representatividade (ou melhor, a falta dela) das mulheres negras nos espaços de discussão e participação referentes à saúde sexual e reprodutiva. De maneira não empírica, percebe-se a predominância de mulheres brancas nos debates sociopolíticos sobre saúde sexual e reprodutiva. Numa rápida pesquisa, foram identificadas em média seis associações que retratam o tema na perspectiva do género (PpDM, Apf, OVO, APDMGP, SaMaNe, UMAR). Destas, são exclusivas à justiça reprodutiva (OVO, APDMGP, SaMaNe) e das três, apenas uma, a SaMaNe, é composta predominantemente por mulheres negras e dialoga diretamente com mulheres negras, tendo surgido inclusive, em 2020, para colmatar esta lacuna de representatividade, tanto no que se refere aos corpos presentes nestes movimentos sociais, quanto aos corpos que são representados.
Desta forma, apesar de nos últimos 10 anos ter havido um notável destaque social e académico para a pauta dos direitos sexuais e reprodutivos em Portugal, como consequência da crescente quantidade de ativistas, coletivos e associações vinculadas à temática, quando observado a partir da interseccionalidade género e raça, os avanços não seguem a mesma direção. Possíveis consequências desta ausência, são ações sociais e a formulação e aplicação de políticas de saúde que não dialogam com as necessidades das mulheres racializadas e que correm o risco de serem política e socialmente excludentes, aumentando o fosso das desigualdades de informação, de acesso aos serviços de saúde e de cuidado adequado, já existentes entre as mulheres brancas e negras, com desvantagens para as últimas.
Dentro desse escopo, o acesso à informação sobre os direitos é essencial para garantir que a mulher tenha uma experiência obstétrica o mais positiva possível. A omissão de informação amplifica-se quanto maior são os estereótipos racistas e xenófobos, que por vezes são também classistas. As experiências das mulheres racializadas têm indicado, na sua perceção, a infantilização e posse por parte dos profissionais de saúde, quando omitem informações por suporem que as mulheres não entendem. É também presente comentários sobre a cor de pele do recém-nascido e sobre o desejo delas terem mais filhos, incluindo, pressão para a toma de contracetivos. Ainda, o adiamento da administração de anestesia medicamentosa, seja durante o trabalho de parto ou durante suturas de lacerações decorrentes do expulsivo [4]. Estas negações de direitos vão de encontro ao que chama-se de parto humanizado e caracterizam-se como violência obstétrica. Para nós, o parto humanizado deve ter como protagonistas a mãe e o bebé, sem intervenções médicas quando não necessário, sem recurso a medicamentos quando não solicitado pela mulher, entre outras características baseadas em evidências científicas. Mas o que é importante questionar é: A quem é dado o acesso ao parto humanizado? Essa possibilidade é mais facilmente alcançada por mulheres brancas. Isso ocorre devido a fatores de privilégio socioeconómicos, acesso a informações e as relações de poder estabelecidas.
As redes sociais digitais (em especial, o Instagram) têm desempenhado um papel fundamental na visibilização do tema dos direitos das mulheres no campo sexual e reprodutivo, já que elas têm servido para o reconhecimento social do fenómeno enquanto um problema social de violência de género que precisa de ser entendido, discutido e combatido, o que inclui o acolhimento da vítima e a garantia de justiça reprodutiva [5]. No entanto, quando aliamos o tema ao racismo e à xenofobia, o debate torna-se mais lento e difícil, inclusive pelo desconforto que o tema gera. A violência obstétrica contra mulheres racializadas é um problema grave que precisa ser enfrentado e as redes sociais digitais podem contribuir para que as mulheres negras compartilhem as suas experiências, denunciem as violências e promovam mudanças significativas na área obstétrica. Mas para isso, é necessário que estas redes sejam também compostas por corpos negros. Maioritariamente os corpos que compõem essas redes sociais e as informações que elas geram, por meio de ilustrações, dos rostos que falam e dos materiais gráficos no geral, como mencionado no início deste texto, são brancos. Apesar destas informações chegarem a todas as mulheres pela possibilidade de dimensão destas redes, dialogam mais com mulheres brancas, inclusive por uma questão de representatividade. Desta forma, não parece exagerado dizer que as redes sociais sobre humanização do parto e sobre direitos sexuais e reprodutivos em Portugal, ainda é branca. Investigações realizadas no Brasil [6] apontam para a importância dos materiais gráficos representarem diversos corpos, raças e etnias como forma de potenciar o autorreconhecimento das mulheres negras como detentoras de um corpo válido e digno de cuidados de saúde [6].
Enfim, a realidade nos diz que em Portugal, assim como na maioria dos países, em especial os europeus, por motivos políticos, históricos e demográficos, existe uma forte invisibilização da mulher negra nos espaços políticos e sociais que se referem a luta por uma justiça reprodutiva, o que silencia as necessidades biopsicossociais destas mulheres e retira delas a construção de lugares seguros, de visibilidade e de apoio mútuo. As pessoas negras não querem apenas o debate, a participação e a construção e execução de políticas de saúde idealizadas por outrem, querem também realizar a suas próprias políticas, com suas ações, planejamentos, agendas e desejos. Ser sujeito da própria história é um ato político!
Notas
[1] Bobbio, N. (1998). Dicionário de Política. Brasília: Editora UnB
[2] Andrade, R. (2020). Representatividade: o que isso significa?, Disponível em URL [Consult. 10 Jun 2023]: <https://www.politize.com.br/representatividade/>
[3] Silva, A.F.l. & Silva, G.M.B. (2019). “Falando a voz dos nossos desejos”: os sentidos da representatividade e do lugar de fala na ação política das mulheres negras. REIS, 3 (1), 42-56.
[4] Faria, I., Brito, L., & Costa, K. (2023). Prejudiced stereotyping rationales of Black and afro descendant women in reproductive care. In C. Botrugno, M.M. Raymundo, L. Re (Eds.) – Bioethics and Racism. Practices, Conflicts, Negotiations and Struggles (pp. 142-179), Berlin: De Gruyter.
[5] Brito, L. (2021). Lutas partilhadas: a importância dos movimentos sociais para o reconhecimento da violência obstétrica. Arandu – Revista Científica del Grupo de Teoría Social, Estudios Descoloniales y Pensamiento Crítico, 33, 12-23.
[6] Silva, M.N.D. & Monteiro, J.C.D.S. (2018). Representatividade da mulher negra em cartazes publicitários do Ministério da Saúde. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 52.
.
.