Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida
Título do artigo: Espaço e Saúde: responsabilidade e consequência
Autor: Luis Pinto de Faria
Filiação institucional: Laboratório de Estudos e Projetos da Universidade Fernando Pessoa LEP; Centro de Administração e Políticas Públicas CAPP/ISCSP/UTL
E-mail: lpintof@ufp.edu.pt
Palavras-chave: arquitetura, espaço, saúde.
O objetivo primordial da arquitetura e do urbanismo é lidar com “(…) os problemas fisiológicos, sociais e psicológicos que interessam os grupos humanos” pelo que o seu enfoque deverá ser redirecionado para o estudo da “(…) relação do ser humano com o espaço e com a arquitetura” [1].
Apesar das contribuições da filosofia, da sociologia, da ergonomia e da psicologia terem permitido um aprofundamento significativo do conceito de função na arquitetura, remetendo o seu valor não só para o especto mais mecanicista do termo como também para o seu potencial enquanto condicionador do comportamento humano, o frenesim económico e mediático das últimas décadas do século XX, associado à era da globalização e da “(…) glorificação decisiva da obra de autor (…)”, terá induzido a disciplina da arquitetura a secundarizar uma utopia de serviço público que lhe era própria, afastando-se “(…) dos problemas sociais básicos, para cultivar o gosto pelo supérfluo e a atenção à publicidade e ao consumo” [2].
Hoje, este panorama mudou.
Vive-se agora um momento civilizacional marcado pelos efeitos de uma sucessão de acontecimentos e transformações de ordem sociocultural e económica que, no seu conjunto, estão a consubstanciar a revisão de todo um conjunto de critérios e de valores pelos quais a realidade é perspetivada.
Não bastasse o impacte do flagelo do “11 de setembro de 2001”; ou as consequências da crise económica de 2007-2008; ou ainda os receios associados às catástrofes ambientais que tem grassado pelo planeta; as consequências do recente fenómeno epidemiológico à escala global, COVID-19, veio confirmar a revisão de paradigma em curso.
No entrecho deste momento de transição entre o otimismo da “era do espetáculo” e a fragilidade e o medo da nova “era da incerteza” [3], esta sequência de provações veio revelar uma sociedade que se metamorfoseou e se reinventou.
Se, por um lado, a crise politico-financeira conduziu a que os outrora símbolos de prosperidade e de desenvolvimento, inspirados em modelos socioeconómicos tidos como de sucesso, se transformassem em símbolos dos excessos do passado – agora já desajustados das reais necessidades e aspirações da população -, pelo outro lado, a excecionalidade do modo como indivíduos, populações e comunidades se têm articulado entre si na resposta aos recentes dramas socio-ambientais – cujo reconhecimento tem sido amplamente difundido à escala global – veio reforçar a possibilidade de se estar a dar início a uma outra “globalização”, agora fundada numa verdadeira “interdependência global” [4], mais solidaria e alicerçada num nova consciência de pertença a um sistema global de interesse coletivo.
Numa sociedade mais humana e humanista, que valoriza cada vez mais o conhecimento, a história, a identidade e o empreendorismo, o direito do cidadão à usufruição plena de espaços capazes de lhes propiciar condições confortáveis e seguras para viver e trabalhar deixou de ser apenas um dever social e uma mais-valia económica para se transformar também numa imposição ética e deontológica.
Estando a arquitetura condenada a refletir a cultura do seu período, enquanto visível evidência do seu próprio tempo e das preocupações e aspirações da sua própria geração, resta apenas questionar o modo como esta disciplina pode integrar metodologicamente estas transformações no seu desígnio criativo e de que modo pode ela, enquanto “(…) ferramenta terapêutica apta a capacitar a humanidade no seu sentido mais amplo” [5], valorizar e potenciar a complexa rede de relações existentes entre quem investiga, quem decide, quem projeta, e quem habita.
Espaço e Saúde
Sabendo-se que cerca de 54% da população mundial reside em áreas urbanas, proporção que deverá crescer para 66% até 2050 [6], e que um cidadão passará em média 90% da sua vida no interior de edifícios [7], sendo cerca de 20% deste período será despendido no seu local de trabalho, percebe-se facilmente a responsabilidade acrescida que é agora atribuída à arquitetura enquanto configuradora de um contexto ambiental facilitador ou, pelo contrário, inibidor ou perturbador da produtividade, da segurança e do bem estar dos cidadãos.
Paradoxalmente, ao contrário do que se verifica relativamente à conceção de equipamentos destinados ao “consumo” (e.g., hotéis; centros comerciais; …), os edifícios destinados a utentes física e mentalmente mais debilitados (e.g. estabelecimentos prisionais; hospitais; residências seniores, …) só agora começam a merecer mais atenção por parte dos técnicos e dos promotores relativamente ao modo como os respetivos «espaços» podem facilitar ou prejudicar o bem-estar físico, mental e social dos seus utilizadores.
No caso particular da conceção de equipamentos destinados a prática de cuidados de saúde, num momento em que se debate afincadamente a necessidade de humanizar estes serviços, torna-se preponderante promover uma arquitetura que, não descurando a componente técnica implícita à construção deste tipo de edifícios, não deixe também de valorizar a criação de espaços e atmosferas mais propicias ao melhor relacionamento entre quem sofre, quem cuida, quem investiga e quem decide. Isto é, sendo o espaço não só um conceito físico como também um conceito relacional [8], não parece sensato visar a humanização dos cuidados de saúde sem ter em consideração a qualificação dos palcos onde esta vai ter lugar.
Apesar da investigação direcionada a esta temática ser para já diminuta, é um facto que a revisão da bibliografia disponível não confirma a existência de evidências suficientes que demonstrem existir uma relação causal entre um determinado tipo de espaço hospitalar e uma qualquer alteração do estado emocional ou de saúde dos utentes.
Isto é, os diferentes componentes da linguagem espacial “(…) não constituem per si um gatilho emocional” [9] pelo que procurar formular diretrizes universais para definir uma tipologia ou palete de cores apropriada para ambientes de assistência médica é ineficaz [10]
No entanto, apesar da ausência de uma confirmação científica que permita afirmar que determinado tipo de espaços nos possam tornar mais ativos, relaxados ou contemplativos, a evidencia demonstra-nos, ainda que empiricamente, que há lugares mais auspiciosos que outros e que o nosso bem-estar físico, mental e social é de facto influenciado pelas condições ambientais em que vivemos.
Tratando-se a o espaço de, simultaneamente, um fenómeno da «perceção» e da «cognição», de «significado» e «interpretação» [11], e sendo a sua apreensão regida por códigos culturais determinados pelas condições socioculturais que a enquadram, será certamente difícil generalizar ou quantificar o tipo de efeito que ele produzirá nas iterações que nele venham a ter lugar. O mesmo não significa que esse condicionamento não exista.
“(…) apesar de pouco se saber sobre de que modo somos afetados pela forma, pela cor e pela luz, uma coisa é certa: esse efeito é físico e é real. A variedade da forma e do brilho da cor são meio efetivos para a recuperação dos pacientes” (Florence Nightingale).
O Desafio
Os novos desafios funcionais que o atual contexto sociodemográfico, económico e ambiental coloca à arquitetura vem reforçar a dimensão ética e humanista da profissão forçando a sua prática a justificar-se socialmente, não tanto pelo que aparenta e simboliza, mas, cada vez mais, pela evidencia das suas consequências.
O papel do espaço enquanto condicionador de sentimentos e comportamentos, apesar de não provado cientificamente, não deverá ser ignorado no processo de conceção e edificação de espaço destinado à prestação de cuidados de saúde nem tão pouco o seu resultado deverá ser reduzido a um produto de circunstância ou a mera sorte.
Sendo certo que o estudo do impacte das componentes do espaço sobre os utentes é complexo e multifacetado e que exige um processo de compreensão participado (utentes e profissionais de saúde), multidisciplinar e holístico do fenômeno [11], será necessário desde já procurar encontrar ou recombinar metodologias e técnicas no sentido de não só promover essa participação como também de conseguir que o resultado dessa interação possa ser percebido, interpretado e consequente.
Notas
[1] Aalto, A. (2000) El Problema de la Vivienda. In G. Schildt (Ed.), Alvar Aalto. De palabra y por escrito. El Croquis Editorial.
[2] Ibelings, H. (1998). Supermodernismo: Arquitectura en la era de la globalización. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S.A.
[3] Fernández-Galiano (2010). Mas por menos. In Arquitectura Viva, “La otra globalización,una estética de lo necesario”; n.º 133.
[4] Morin, E. (2020), Le confinement peut nous aider à commencer une detoxification de notre mode de vie. In L’OBS, 28/03/2020.
[5] Decker, R. T. (1994). Tactility and imagination: considerations of aesthetic experience in architecture. In M. H. Mitias (ed.), Philosophy and Architecture. Rodopi, Amsterdam.
[6] ONU, “Perspectivas da Urbanização Mundial”.
[7] Klepeis N.E., Nelson, W.C., Ott W.R. et al. (2001).The National Human Activity Pattern Survey (NHAPS): A Resource for Assessing Exposure to Environmental Pollutants. Journal of Exposure Analysis and Environmental Epidemiology, 11(3), p.231-252.
[8] Lingsom, S. (2012). Public space and impairment: an introspective case study of disabling and enabling experiences. Scandinavian Journal of Disability Research, Vol. 14, Iss. 4, pp. 330-331.
[9] Beach, et. Al. (1988). Center of Health Design.
[10] Tofle,,R. B. (2004). Color In Healthcare Environments – A Research Report. Coalition for Health Environments Research. AIA
[11] Schwarz, B. (2005). Color Design in Healthcare Environments: Theoretical Observations. University of Missouri, MO.
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