Sociologia e Medicina Narrativa: duas faces da mesma moeda

Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: Sociologia e Medicina Narrativa: duas faces da mesma moeda

Autora: Paula Silva

Filiação institucional: Faculdade de Medicina da Universidade do Porto | Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto – Instituto de Investigação em Saúde

E-mail: psilva@med.up.pt

Palavras-chave: cancro, narrativas, multidisciplinariedade.

Em Portugal, a prestação de cuidados de saúde é ainda marcadamente definida pela biomedicina, o que contraria o discurso (também) político de considerar a experiência da doença como um fator determinante para a emergência de um novo paradigma naquele domínio. Nesse processo de renovação, as dimensões dolência [1] (illness) e doença (disease) – que correspondem aos “modos de sofrimento causados por (…) processos patofisiológicos” (Kleinman, 1988:3-4)[2] – conjugam-se com a componente mais abrangente e “normalizadora” socialmente estabelecida: sickness. Assim concebida, a arquitetura dos cuidados em saúde resgata algumas das práticas que foram descontinuadas pela forte implantação da tecnologia de que tem sido alvo.

É esta a essência da Medicina Narrativa, lugar de encontro e de troca entre saberes distintos mas simultaneamente complementares. As confluências, divergências e reflexividade que a caraterizam revelam a importância de integrar a multiplicidade de modos de agir e de pensar dos atores em situação. Por consequência, torna imprescindível a avaliação dos fatores que concorrem para a disrupção biográfica da pessoa doente (Bury, 1982)[3] bem como, num plano mais amplo, do desenho organizacional dos cuidados de saúde e das políticas públicas que os regulam. Nesta desejada (e desejável) transformação, é atributo da Sociologia promover novos modos de reflexão e de intervenção que considerem o caráter negocial do(s) significado(s) atribuídos à ação (própria e dos outros).

Não obstante, uma reorganização dos cuidados em saúde em rede só se tornará efetiva se acompanhada de um rearranjo dos conhecimentos e competências dos seus múltiplos agentes, dos quais destacamos os profissionais de saúde e as pessoas com doença. Tomaremos como exemplo bem-sucedido desta proposta o projeto “Conhecer a doença: os doentes em primeiro lugar”, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian e desenvolvido entre 2011 e 2016 no Instituto de Patologia e Imunologia da Universidade do Porto (IPATIMUP).

O projeto teve por base uma iniciativa realizada em 2008 por um grupo de patologistas da Universidade Johns Hopkins – intitulada Putting patients first – na qual foi elaborado um conjunto de Perguntas Mais Frequentes (PMF) respeitante a relatórios anatomopatológicos de biopsias dos cinco cancros (e respetivas lesões precursoras) mais frequentes nos EUA: mama, pulmão, cólon, esófago e próstata. A frequência das dúvidas colocadas telefonicamente por doentes ou clínicos [4] conduziu à necessidade de desconstrução da linguagem técnica, tornando mais simples e acessível o conteúdo daqueles relatórios por pessoas sem literacia em saúde (Epstein, 2010) [5]. Foi este o contexto que determinou a disponibilização das PMF à generalidade dos cidadãos.

As diferenças estruturais entre os EUA e Portugal – nomeadamente quanto à inacessibilidade aos relatórios anatomopatológicos pela maioria dos doentes – fez alargar o âmbito do projeto “Conhecer a doença: os doentes em primeiro lugar”. Deste modo, o seu âmbito alargou-se a outros profissionais de saúde (que não só anatomopatologistas) e a pessoas com doença, cuja experiência relatada na primeira pessoa foi tomada como ponto de partida. Numa primeira fase, as diferentes PMF (traduzidas por anatomopatologistas portugueses) foram entregues a 100 pessoas com diagnóstico de cancro (das patologias mencionadas) no decurso de uma entrevista. A diferente incidência de cancro em Portugal determinou, numa segunda fase, a inclusão das patologias de estômago, tiroide e bexiga. Foi condição indispensável para entrevista a existência de um relatório anatomopatológico com diagnóstico de malignidade.

No total, o estudo envolveu 133 respondentes de ambos os sexos que frequentavam à época as consultas de oncologia do Centro Hospitalar de S. João e do IPO-Porto, tendo a análise das narrativas sido efetuada com recurso a um software de análise qualitativa (NVivo). O conhecimento da(s) história(s) da doença e da avaliação do feedback às PMF tornou possível traçar um perfil de doença oncológica mais próximo da realidade portuguesa (em particular das oito patologias descritas) e aferir, nesse enquadramento, o modelo mais adequado para promover o aumento da capacitação cidadã. A construção multidisciplinar de booklets foi a estratégia considerada ideal para atingir esse propósito. A conclusão da sua elaboração aconteceu dois anos após a realização das entrevistas, à qual se seguiu um processo de avaliação por parte dos entrevistados. Inicialmente, tal correspondeu ao envio das PMF originais e das novas versões que incluíam um pequeno questionário; num segundo momento, à realização de grupos de discussão (organizados por patologia). Os booklets e a história do projeto estão disponíveis no respetivo site: http://conheceradoenca.ipatimup.pt/. Nos destinatários incluem-se não só os portadores de doença, seus familiares e/ou cuidadores, como também os profissionais de saúde.

Este constitui um exemplo da versatilidade e vocação da Sociologia em observar para lá das estruturas formais que enformam os comportamentos individuais e institucionais. É isso que a torna tão próxima da Medicina Narrativa.

Notas

[1] Barahona-Fernandes (1979), “Psiquiatria social. Modelo antropológico médico da doença/saúde mental”, Acta Médica Portuguesa, 2:251-265. Este psiquiatra traduziu illness por dolência, “o adoecer vivido como sofrimento”.

[2] Kleinman, Arthur (1988), The illness narratives: Suffering. Healing and the Human Condition, N.Y.: Basic Books.

[3] Bury, Michael (1982), “Chronic illness as biographical disruption”, Sociology of Health & Illness, 4(2):167-82.

[4] Nos EUA, os laboratórios de anatomia patológica possuem call centers cujo atendimento é feito por especialistas.

[5] Epstein, Jonathan (2010), “The PMF initiative explaining pathology reports to patients”, American Journal of Surgical Pathology, 34:1058-1060.

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