A Espessura dos Cuidados de Saúde à luz da Medicina Narrativa

Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de vida

Título do artigo: A Espessura dos Cuidados de Saúde à luz da Medicina Narrativa

Autora: Susana Vasconcelos Teixeira Magalhães

Filiação institucional: Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S-UP)

E-mail: susana.magalhaes@i3s.up.pt

Palavras-chave: medicina narrativa, cuidado, formação.

O cuidado é sempre concreto, relacional, responsável e comprometido, pelo que, para cuidarmos bem, temos de resgatar três conceitos que têm sido roubados na sua espessura, tornando-se tão magros que quase não os vemos:  Tempo, Palavra e Relação. Para que estes conceitos sejam verdadeiramente (re)integrados nos cuidados de saúde, seria importante (re)definirmos os seus alicerces à luz do que designo de três R’s: Relação, Reconhecimento da Vulnerabilidade e Respeito. São estes pilares que, existindo, permitem que os significados que emanam da pessoa que está doente e não apenas da doença tenham impacto na tomada de decisão em contexto clínico. São estes valores que permitem articular o significado da doença descrita em linguagem científica (disease) com o significado da doença para a pessoa que a vive (illness) e ainda com o modo como a sociedade a interpreta (sickness). De facto, na doença, é o Outro concreto, que se queixa, não é a doença enquanto entidade abstrata. As dimensões intra-subjetivas e intersubjetivas da Medicina incluem não apenas o encontro médico-doente, mas também todos os outros membros da relação terapêutica – familiares, outros profissionais de saúde e sociedade. Todos são convidados a participar na transformação da paisagem dos cuidados de saúde, território marcado por questões éticas persistentes e emergentes: a alocação de recursos, a gestão de serviços, a comparticipação de medicamentos, a definição de critérios de prioridade no atendimento aos doentes, a articulação entre os serviços sociais, da justiça e da educação e os da saúde. O envelhecimento da população e consequente aumento da percentagem de pessoas com doenças crónicas, bem como os avanços tecnológicos, colocam novos desafios que exigem novas respostas, de modo a garantir que os cuidados de saúde são de facto centrados na pessoa do doente, do cuidador e do profissional de saúde.

A medicina narrativa tem estudado e refletido sobre o modo como o cenário acima descrito exige respostas ao nível da formação, da investigação e da prática. Trata-se de uma área interdisciplinar que se sedimentou no início do séc XXI em resposta às inquietações éticas de uma prática médica orientada para a estandardização, para os exames auxiliares de diagnóstico e para a objetividade de guidelines e check-lists que não comportam a dimensão subjetiva e intersubjetiva das relações humanas. Pelo facto de promover a reflexão sobre a natureza do conhecimento e sobre a sua legitimidade, a medicina narrativa

  • permite compreender os fatores que estão na base dos cuidados centrados na pessoa, promovendo nos profissionais de saúde gestos, atitudes, olhares e comportamentos que sejam facilitadores e até condição essencial para a implementação destes cuidados;
  • contribui para rasgar o horizonte do raciocínio ético para além do encontro médico-doente, integrando o que acontece fora deste contexto;
  • promove a sensibilidade ética no encontro com o Outro, reduzindo os resíduos morais;
  • ilumina as metáforas subjacentes à experiência da doença e constitui, pela leitura cerrada de textos literários e de narrativas não literárias, uma fonte de recursos imagéticos e linguísticos que podem facilitar a comunicação entre quem cuida e quem é cuidado.

A dimensão intersubjetiva das relações terapêuticas e a relevância do conhecimento narrativo exigem dos profissionais de saúde capacidades que lhes permitam reconhecer e interpretar a situação crítica dos outros, agindo de modo a eliminar, a reduzir ou a aliviar o sofrimento [1]. O que se propõe é o diálogo entre o melhor da Medicina Baseada na Evidência e o melhor da Medicina Baseada na Narrativa. Como se constrói esta ponte? Repensando termos e conceitos, atitudes e práticas; refletindo sobre o impacto dos rótulos e sobre as histórias invisiveis em cuidados de saúde. Não basta colher mais dados sobre o doente e registá-los na ficha clínica, se não houver espaço para reconhecer e integrar a validade destes dados nos cuidados efetivamente prestados, considerando o papel modelador da interação médico/ doente no ato comunicativo [2]. Ou seja, não é suficiente identificar o doente como o vulnerável, se esta sinalização for acompanhada da sua cristalização num papel que lhe retira toda a sua autonomia e/ou que apaga toda a sua biografia.  E a situação será ainda mais complexa e perniciosa se neste processo de rotulagem se incluir o profissional de saúde como invulnerável, neutro, objetivo, dissociando a sua humanidade do seu exercício profissional.

A necessidade de enquadrar a fragilidade da pessoa doente no seu contexto biográfico e biológico exige um novo olhar ancorado no respeito pela vulnerabilidade dinâmica (não cristalizada) e pela autonomia relacional [3]. São estes princípios que, entendidos como bases do cuidado responsável, poderão evitar a injustiça epistémica que, segundo Miranda Fricker [4], se manifesta de duas formas: a injustiça testemunhal, enraizada em preconceitos e rótulos que não permitem que a voz da pessoa doente e a voz da pessoa do profissional de saúde sejam verdadeiramente escutadas e integradas no cuidado; e a injustiça hermenêutica, que se manifesta quando os recursos interpretativos falham, não permitindo identificar a fonte do sofrimento,  a qual permanece assim silenciada.

A formação em medicina narrativa — ancorada na leitura e na escuta cerradas (close reading e close listening), na pratica reflexiva consolidada no registo clínico paralelo (parallel chart) e nas narrativas sobre a experiência da doença — dá espessura aos elementos narrativos que têm particular importância nos cuidados de saúde: a Voz, o Tempo, o Espaço, as Personagens e os seus Enredos. A criatividade, a reflexão e a reciprocidade — pilares da medicina narrativa — permitem:

  • Repensar práticas nos cuidados de saúde, consciencializando os profissionais do modo como estas modelam a resiliência e as vulnerabilidades situacionais e intrínsecas;
  • Reconceptualizar as fontes da vulnerabilidade situacional como camadas e não como estruturas fixas que não conseguimos eliminar ou suavizar;
  • Respeitar quem solicita o cuidado e quem cuida;
  • Criar Clareiras de Criatividade que deem espaço à pessoa e que transformem espaços mortos em lugares de relação, identitários e históricos.

Notas

[1] Charon, Rita (2001), Narrative Medicine: Form, Function, and Ethics, Ann Intern Med,134, pp. 83-87. (doi:10.7326/0003-4819-134-1-200101020-00024)

[2] Murphy, John W; Choi, Jung Min; Cadeiras, Martin, (2016), The Role of Clinical Records in Narrative Medicine: A Discourse of Message, Spring;20(2), pp.103-108 Disponível em URL [Consult February 2019]: http://dx.doi.org/10.7812/TPP/15-101.

[3] Rogers, Wendy, Mackenzie, Catriona, and Dodds, Susan, (2012), International Journal of Feminist Approaches to Bioethics , Vol. 5, No. 2, Special Issue on Vulnerability (Fall 2012), pp. 11-38, p. 23, University of Toronto Press Stable. Disponível em URL [Consult January 2019]: https://www.jstor.org/stable/10.2979/intjfemappbio.5.2.11.

[4] Fricker, Miranda, (2007), Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford: O.U.P.

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