Dimensão analítica: Educação e Ciência
Título do artigo: Cultura e ciência. Ciências Sociais e Ciências Naturais
Autor: João Aguiar
Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
E-mail: jaguiar@letras.up.pt
Palavras-chave: ciência, ciências sociais, cultura.
O leitor poderá nunca ter reparado mas nos EUA existem nalgumas das suas melhores universidades a figura da School of Arts and Sciences (SAS). Aqui ficam alguns exemplos: Yale Graduate SAS, Georgetown University Graduate SAS, Harvard Graduate SAS, UCLA College of Letters and Science, Dietrich College of Humanities and Social Sciences, Columbia Graduate SAS. Num mesmo espaço institucional e académico coexistem departamentos de Línguas e Humanidades, Ciências Sociais e Ciências Naturais. Isso significa que, apesar da natural e desejável especialização e diferenciação entre disciplinas do saber, elas podem partilhar esforços de interdisciplinaridade. Sem com isso levar ao abrandamento da pesquisa científica ou analítica em cada um dos respetivos campos. Em suma, manter e aprofundar a especialização num subcampo de estudo/investigação não nos deve fazer esquecer o quadro geral.
A influência entre a cultura e a ciência é mútua. Se se enveredar por uma conceção minimalista de cultura enquanto sistema de valores, perceções e significados que os agentes sociais atribuem ao mundo em que vivem, percebe-se que a ciência enraíza-se no contexto histórico. Não é por acaso que a ciência moderna e a Revolução Científica germinaram nos séculos XVI e XVII, de acordo com a formulação do historiador David Wootton [1]. Ou seja, sem o contexto histórico prévio de início de rejeição da centralidade/exclusividade do pensamento mítico-religioso e supersticioso, a ciência moderna não poderia ter surgido. Simetricamente, mais especificamente no caso das Ciências Naturais, a ciência moderna passa por princípios tão básicos como metodologias e mecanismos de pesquisa do real e de elaboração de explicações sistemáticas dos seus padrões de articulação e funcionamento, num quadro de replicação e de comparação/discussão dos resultados obtidos experimentalmente.
Mas se as Ciências Naturais necessitaram de um contexto historicamente favorável, importa atender a mais alguns aspetos desta relação complexa entre ciência e sociedade:
1) A ciência depende do financiamento, do apoio e da valorização que a sociedade em geral dá à produção científica. Por outro lado, o facto de a ciência confrontar-se com processos de pseudociência demonstra como o plano da perceção pública sobre as instituições e práticas científicas varia com o contexto envolvente.
2) A ciência modificou a perceção da sociedade sobre si mesma e sobre o mundo natural. De um ponto de vista intrínseco à sua atividade, sem a ciência não teríamos consciência de que a Terra se move em volta do Sol ou de que existem microrganismos invisíveis ao olho humano, responsáveis por determinadas infeções. Para além dos indesmentíveis contributos materiais ao nível do aumento da esperança média de vida e da qualidade de vida, a ciência ampliou a nossa escala de perceções, tanto ao nível macro como no nível micro.
3) Se as Ciências Naturais puderam atingir um estatuto central nas sociedades modernas por via da influência de fatores históricos, institucionais e socioculturais, isso não nos deve levar a confundir a instituição científica (e as suas redes internas de trabalho científico) com o objeto que elas estudam. Isto é, uma coisa é a organização social do trabalho científico e a sua proeminência recente na sociedade em geral (que na Medicina praticamente só chegaria nos últimos 100 a 150 anos). Esta é a dimensão historicamente variável (e institucional) da ciência. Outra coisa é a substância dos objetos de estudos. As células, as moléculas, os planetas, etc. não dependem da nossa opinião. Ou seja, são realidades objetivas. É por isso que o teorema de Pitágoras, as leis da Termodinâmica ou os mecanismos da circulação sanguínea são realidades estabelecidas e existentes, independentemente da consciência humana. O que não invalida o facto de que a descoberta e a inteligibilidade de fenómenos científicos dependeram de um contexto histórico e social específico.
Estes três pontos procuram ilustrar o vaivém entre ciência e sociedade, dando conta da inserção social da ciência, das suas especificidades únicas e da sua influência sobre a sociedade em geral. Estamos aqui num terreno em que se procuram superar simultaneamente o essencialismo naturalista e o essencialismo pós-moderno de que tudo seria uma pura construção cultural e discursiva.
Por outro lado, os comportamentos humanos têm uma forte marca social. Se, enquanto atores sociais e históricos, fossemos unicamente produtos genéticos então a História humana teria sido invariavelmente a mesma ao longo do tempo. Ou seja, historicamente as formas de organização da economia, das comunidades políticas ou das famílias variaram e, mesmo entre si, articularam-se de modo distinto. Ter consciência deste facto não nega considerar que a vida em sociedade só é possível, em certa medida, porque, nós humanos, temos uma determinada base biológica e genética. Mas para além desta dimensão inescapável, não deixa de ser verdade que a multiplicidade de comportamentos ao longo da História tem uma dimensão social. A forma como se foram alterando radicalmente as relações entre as classes sociais, as formas de organização do trabalho, as instituições políticas, a evolução dos modelos familiares, as modalidades de extração de excedente económico, etc. como que representam um complexo processo de escrita com e por cima da nossa biologia. O próprio facto de a evolução biológica ter proporcionado determinadas capacidades cognitivas [2], permite-nos construir relações sociais: pensar e refletir sobre a nossa condição enquanto seres biológicos em constante relação interpessoal (com amigos, família, colegas, conhecidos) e supra-pessoal (a relação de cada um com a cultura do seu tempo, com as instituições, com as “modas” ou as ideologias vigentes, etc.). Por conseguinte, não faz sentido cavar trincheiras entre as Ciências Naturais das Ciências Sociais, já que a “natureza” humana inscreve-se nessa articulação íntima entre bioquímica, genética e sociedade.
Num tempo em que diversas manifestações da pseudociência [3] adquirem uma grande (e perniciosa) influência, importa que as Ciências Sociais e as Ciências Naturais sejam capazes de articular esforços. No que à Sociologia diz respeito, o seu contributo poderá passar por fornecer ferramentas que procurem compreender a adesão de camadas da população a práticas de pseudociência. Adicionalmente, a Sociologia pode auxiliar à compreensão da inserção da produção científica nas formações sociais contemporâneas, na medida em que os resultados científicos lidam sempre com repercussões sobre as populações. As fricções entre os dados científicos objetivos e as representações mais ou menos opacas de segmentos diferenciados das populações sobre o mundo natural constituem um campo frutuoso para a investigação sociológica. A pseudociência imiscui-se precisamente nesse interstício, combinando parcos conhecimentos (sobre a teoria e o método) científicos, com a busca pela confirmação de crenças pessoais. O exemplo do racismo [4] é, a este título, por demais evidente. Num artigo de Miguel Estrada é demonstrado que não existem critérios biológicos e científicos que justifiquem a divisão da espécie humana em raças. E, mesmo perante factos científicos, ainda se está muito longe de erradicar o racismo da paleta de preconceitos.
Em consonância, em termos de políticas públicas, uma eventual abordagem multidimensional poderia passar pela elevação da cultura científica, pelo ensino da evolução histórica das relações entre ciência e sua receção pela sociedade, bem como através de iniciativas várias de divulgação científica.
Notas
[1] – Wooton, David (2016) – The invention of science. London: Penguin
[2] – Boyer, Pascal (2018) – Minds make societies. How cognition explains the world humans create. Yale University Press
[3] De um ponto de vista deletério, a ciência é muitas vezes utilizada pelos seus “inimigos” (Carlos Fiolhais e David Marçal (2018) – A ciência e os seus inimigos. Lisboa: Gradiva) enquanto amálgama confusa de termos para justificar práticas não-científicas, como a “medicina” quântica, integrativa, tradicional chinesa ou ortomolecular. Curioso paradoxo verificar manifestações contra-científicas recorrerem a termos de origem científica para legitimarem a sua atividade.
[4] – Miguel Estrada (2019) – A ignorância e o abuso de “raça” no extremismo… Observador.
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