Dimensão analítica: Educação e Ciência
Título do artigo: A publicação científica como modeladora da subjetividade dos investigadores
Autor: Fernando Ampudia de Haro
Filiação institucional: Universidade Europeia / CIES-Instituto Universitário de Lisboa
E-mail: fernando.ampudia@universidadeeuropeia.pt / fernando.haro@iscte-iul.pt
Palavras-chave: publicação científica, fator de impacto, subjetividade.
O famoso ditado “Publish or Perish” é uma fonte de pressão para quem ensina e investiga na universidade. Trata-se de um imperativo que vem acompanhado do fator de impacto (FI) das revistas científicas, do número de citações recebidas ou da inclusão das publicações em índices internacionais como critérios de recrutamento, de promoção profissional ou de avaliação do desempenho. [1]
A nível macrossociológico, como fonte de pressão, está relacionada com um contexto global definido pela economia do conhecimento, pelo fenómeno do managerialismo [2] universitário e científico e pela valorização mercantil do conhecimento. A nível microssociólogico, onde se posiciona este texto, relaciona-se com a consolidação de um arquétipo de docente-investigador definido por um tipo de subjetividade específica.
Uma das vias preferentes de conformação dessa subjetividade é o material didático que as universidades disponibilizam aos seus membros para moldar a sua conduta publicadora. Esse material didático é oferecido em ações de formação, workshops ou palestras que pretendem ensinar a publicar em revistas científicas com um elevado FI. Ou, por outras palavras, que visam ajustar a conduta publicadora a um padrão de publicação desejável. A análise deste material didático demonstra que se organiza em torno de três questões principais: [3]
- a) Por que publicar em revistas com um elevado FI? Primeiro, porque o FI é um indicador da qualidade da revista e, consequentemente, dos artigos que contém. A qualidade deriva da lógica competitiva: se a reputação e as oportunidades de carreira passam por ter artigos nestas revistas, os trabalhos submetidos serão muitos, permitindo aos editores escolher os melhores. E segundo, porque o FI ativa um círculo virtuoso que começa com a publicação e continua com convites para fazer parte de júris de avaliação ou de conselhos editoriais. Deste modo, aumentam as possibilidades de financiamento e contratação de recursos humanos, o que permitirá produzir mais artigos.
- b) Como publicar? Maximizando os efeitos da própria publicação em termos de reputação e oportunidades materiais. Isto exige uma escolha criteriosa da revista segundo a tendência do seu FI, o conselho editorial ou a periodicidade. Os temas devem ter capacidade para gerar citações e as fontes referir bibliografia internacional evitando trabalhos de autores “exóticos”, poucos conhecidos ou com origem em países sem tradição científica.
- c) O que fazer com os trabalhos publicados? Estes têm de contribuir para melhorar a discoverability do investigador. Esta noção mistura visibilidade, reconhecimento e facilidade para ser detetado pelos principais motores de busca. A potencialização deste atributo pode ser conseguida mediante a construção de sites e blogues pessoais, a participação nas redes sociais, a atualização do CV nas páginas institucionais ou a criação de perfis em redes especificamente académicas (ORCID, Research Gate, Academia, Scopus ou Researcher ID).
De acordo com estas diretrizes, esboça-se um modelo de docente-investigador-publicador cuja subjetividade apresenta quatro caraterísticas fundamentais:
- a) Auto-heterovigilância estratégica. Dados como o FI ou o número de citações recebidas permitem calcular a relevância da produção científica. Desta forma, é possível controlar estratégica e reflexivamente a conduta publicadora própria e alheia, condição imprescindível para a acumulação de capital científico.
- b) Racionalidade publicadora utilitária. Privilegia o cálculo e a maximização de qualquer esforço publicador. Desenvolve-se, segundo Alvesson [4], uma mentalidade ROIsearch, síntese entre investigação (research) e o acrónimo ROI (return of investment), que avalia a rentabilidade daquele esforço.
- c) Ritualismo intelectual. A execução de um conjunto de procedimentos estandardizados destinados à publicação de um artigo numa revista com elevado FI favorece a produção sequenciada de textos com a mesma estrutura, tipo de redação, enfoque ou temas. Esta homogeneização anula a finalidade do artigo, isto é, a comunicação do conhecimento, substituída agora pela produção generalizada per se de textos científicos.
- d) Ensimesmamento publicador. Relaciona-se com o número de publicações, com o FI e com as citações como bases da distinção científica. Acompanha-se de ações de autopromoção para aumentar as referências aos próprios trabalhos. O marketing pessoal gera o risco quer de exagerar a importância das contribuições do investigador, quer da hiperbolização da sua personalidade.
O discurso prescritivo sobre a publicação foca-se na maximização do impacto, no círculo virtuoso que geram os artigos científicos e na autopromoção pessoal insistindo na necessidade de o docente-investigador ser pró-ativo. Deste modo, furta-nos a vertente socio-estrutural do fenómeno: a posição semiperiférica de Portugal no sistema científico mundial, a concorrência desigual em termos de recursos e infraestrutura, as barreiras linguísticas, a secundarização dos temas locais-nacionais face aos temas “anglo-saxonicamente” internacionais ou o oligopólio editorial e indexador, são fatores que condicionam a atividade publicadora muito além de uma hipotética falta de proatividade individual. Sem uma reflexão sobre os condicionalismos socio-estruturais, a publicação torna-se um exercício de emulação dos países centrais (sobretudo, Estados Unidos e Reino Unido) em condições de desvantagem crónica para Portugal. O modelo de docente-investigador proposto nas ações de formação universitárias coloca a ênfase na ação individual, obscurecendo essa desvantagem. Por esse motivo, teremos de nos perguntar até que ponto é pertinente assumir um discurso construído sobre esse obscurecimento; um discurso que não incorpora a análise da desvantagem nas exigências que realiza aos seus investigadores.
Notas
[1] A reflexão que aqui se apresenta é uma síntese informativa de dois trabalhos prévios: Ampudia de Haro, Fernando (2017), O impacto de (não) ter impacto: Para uma sociologia crítica das publicações científicas, Revista Crítica de Ciências Sociais, 113, pp. 83-106, doi: http://dx.doi.org/10.4000/rccs.6659; Ampudia de Haro, Fernando (2019), Gerencialismo universitario y publicación científica, Debats. Revista de cultura, poder y sociedad, 133(1), pp. 47-62, doi: http://dx.doi.org/10.28939/iam.debats.133-1.4
[2] Este conceito designa a aplicação genérica das ciências da gestão ao governo das organizações assim como os valores que lhe estão associados.
[3]As referências completas desse material podem ser consultadas nos artigos anteriormente referidos.
[4] Alvesson, M. (2012), Do we have something to say? From re-search to roi-search and back again. Organization, 20(1), pp. 79-90. doi: 10.1177/1350508412460996
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