Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública
Título do artigo: Ser feliz é uma responsabilidade individual?
Autora: Ana Roque Dantas
Filiação institucional: Universidade NOVA de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA)
E-mail: ana.roque@fcsh.unl.pt
Palavras-chave: Felicidade, Sociologia da felicidade, Desigualdades sociais.
A ideia de felicidade actualmente partilhada, socialmente aceite e amplamente difundida é a de que esta é uma responsabilidade individual, alcançável e dependente da capacidade de escolha. No entanto, e como veremos ao longo deste artigo, a felicidade é amplamente influenciada por circunstâncias sociais e marcada por desigualdades sociais. A transmissão desta ideia de felicidade surge através de publicações, filmes, publicidade ou comunicação social, tornando “[…] as pessoas no ocidente bombardeadas como nunca de imagens dos rostos sorridentes de pessoas reais, divertindo-se eternamente como é de seu direito.” [1]. Estas imagens, constituem solicitações sociais que influenciam a forma de sentir, de expressar e de procurar felicidade.
Simultaneamente, a importância social da felicidade tornou-se ainda mais visível com a decisão das Nações Unidas, em 2012, de criar o Dia Internacional da Felicidade (20 de Março), reconhecendo a sua relevância enquanto objectivo de vida individual e compromisso para com o bem comum, e promovendo o reconhecimento desta aspiração nos objectivos das políticas públicas. A par desta iniciativa, destacam-se as recentes preocupações dos Governos com a medição do bem-estar das suas populações, monitorizando a felicidade enquanto medida de progresso social.
No domínio do conhecimento científico, estão já identificados os principais aspectos que influenciam a felicidade. As investigações existentes em diversas áreas disciplinares permitem-nos saber que a felicidade é influenciada por características individuais, mas também estruturais, sociais e económicas, como a paz, segurança, democracia, e desenvolvimento económico e cultural [2]. Os estudos permitem-nos ainda saber que a felicidade assume uma importância central para as pessoas, tanto na sua concretização quotidiana, como enquanto projecto a longo prazo, alimentado expectativas e orientações face ao futuro [3]. Esta concepção de felicidade assenta na crença de que cabe às pessoas melhorar as suas próprias condições de vida e a vida da sociedade em geral. Esta ideia de livre exercício das capacidades humanas e que está na base da construção das sociedades modernas, contaminou os ideais de felicidade, nomeadamente a convicção de que esta é um direito (tal como fica expresso na declaração de independência dos EUA), devendo ser conquistada por iniciativa pessoal [4].
Assim, somos socialmente condicionados a procurar, a aparentar e a partilhar felicidade: ser feliz é sinónimo de normal e tem a aura de contágio positivo. Ao contrário, os infelizes carregam o estigma da desadequação, do fracasso e da influência negativa sobre o outro. Como tal, ser feliz é também um atributo distintivo socialmente desejado e que está associado a sucesso individual e a prestígio social. De acordo com Ahmed [5], a felicidade é uma promessa que direcciona e condiciona as escolhas individuais, pois contém a expectativa de transformação e melhoria do existente e é sentida como uma recompensa pela adequação à imagem social, ao papel socialmente reconhecido.
No mesmo sentido, um estudo sobre percepções de felicidade na sociedade portuguesa [6], revela que o entendimento mais comum é o de que ser feliz é uma responsabilidade individual e a consequência da tomada de decisão acertada. Apesar disso, e ainda que esta ideia esteja amplamente difundida, os resultados desta investigação sociológica revelam que há diferenças decorrentes da posição social ocupada, da idade e do sexo quanto às estratégias e idealizações de felicidade, mostrando que uns estão mais capacitados que outros para definir as condições de procura e vivência da sua felicidade. Numa sociedade que valoriza a autonomia e em que impera a convicção de que as pessoas têm o poder de moldar as suas vidas, e de que a felicidade é o resultado das (adequadas) decisões individuais, verificamos que as condições sociais que permitem esta autonomia estão para além da acção individual. As formas como as pessoas pensam, falam, imaginam, desejam e agem estão profundamente marcadas pelas suas circunstâncias sociais. Neste sentido, a ideia de responsabilidade individual quanto à felicidade contribui para perpetuar desigualdades e para reforçar padrões emocionais congruentes com a defesa do estatuto social, tal como Barbalet defendeu na sua análise da crise mineira inglesa dos anos 60/70 [7]. Fica assim claro que a expressão, procura e idealização de felicidade são marcadas por desigualdades sociais mais vastas que distinguem formas de sentir, independentemente da nossa interpretação e vivência individual das experiências.
Deixo uma última consideração no sentido de reforçar a importância de estudar felicidade. Cabe-nos a todos desmontar e questionar ideais de felicidade que constrangem as nossas formas singulares de sentir porque a felicidade tem inúmeras consequências positivas para as pessoas e para a sociedade em geral. Diversos estudos têm mostrado o benefício da felicidade para a longevidade, para a saúde e para a construção e manutenção de relações sociais. Também a nível económico, a percepção de felicidade se associa a produtividade e a envolvimento comunitário [8][9]. Não se pretende defender uma uniformização das formas de sentir, mas se a felicidade é fortemente influenciada por circunstâncias sociais, então é necessário construir as condições de igualdade que permitam o seu acesso generalizado.
Notas
[1] Mcmahon, D. M. (2009). Uma história da felicidade. Lisboa: Edições 70.
[2] Graham, C. (2011). O que nos faz felizes por esse mundo fora. O paradoxo dos camponeses felizes e dos milionários miseravelmente infelizes. Alfragide: Texto Editores.
[3] Roque Dantas, A. (2012). A construção social da felicidade. Lisboa: Colibri.
[4] Mcmahon, D. M. (2009). Uma história da felicidade. Lisboa: Edições 70.
[5] Ahmed, S. (2008). Multiculturalism and the promise of happiness. New Formations (63), 17.
[6] Roque Dantas, A. (2015). A felicidade enquanto recurso emocional socialmente desigual: para uma abordagem sociológica do sentir (Tese de Doutoramento), FCSH/UNL, Lisboa. Disponível em http://hdl.handle.net/10362/15119
[7] Barbalet, J. (1998). Emoção, teoria social e estrutura social. Uma abordagem macrossocial. Lisboa: Instituto Piaget.
[8] Layard, R. (2005). Happiness: Lessons from a New Science. Londres: Penguin Books Limited
[9] Veenhoven, R., e Jonkers, T. (1984). Conditions of happiness (D. Reidel Publishing Company ed. Vol. 2). Berlin: Springer.
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