Ilhas do Bonfim: a vida urbana no Porto, para além das fachadas

Dimensão analítica: Cultura, Artes e Públicos

Título do artigo: Ilhas do Bonfim: a vida urbana no Porto, para além das fachadas

Autora: Lígia Ferro

Filiação institucional: Instituto de Sociologia / Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

E-mail: lferro@letras.up.pt

Palavras-chave: Ilhas, arte, participação social.

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Fotografia: Paulo Pimenta

As ilhas constituem uma tipologia de habitação que se espalhou pelo território da cidade do Porto, especialmente na segunda metade do século XIX. Num contexto de acelerado processo de industrialização, esta solução habitacional permitia que os operários vivessem perto dos seus locais de trabalho. As ilhas foram crescendo no Porto, encontrando-se morfologicamente imbricadas no seu tecido estrutural urbano [1].

Morar nas ilhas do Porto implicou, e continua a implicar em muitos casos, viver em espaços com poucas condições de habitabilidade (espaços de residência exíguos, com fraca qualidade de construção, redes débeis de abastecimento de água e eletricidade, etc.), mas também estar integrado em redes sociais constituídas por fortes laços de vizinhança e de solidariedade. Apesar do anúncio repetido do fim das ilhas no Porto, as mesmas persistem na cidade e muitas delas continuam habitadas.

Partindo de um trabalho de levantamento e caraterização das ilhas do Porto encomendado pela CMP, a Rede Inducar [2] decidiu construir um projeto de intervenção social e artística no Bonfim, a terceira área da cidade do Porto com mais unidades habitacionais em ilhas [3] e aquela que tem tido mais impacto nos media no que diz respeito a este assunto, principalmente devido ao programa de reabilitação de ilhas promovido pelo presidente da Junta de Freguesia e ao facto de a Câmara Municipal do Porto ter reabilitado a ilha da Bela Vista, localizada no coração do Bonfim.

Uma grande parte dos residentes nestes espaços habitacionais não quer “deixar a sua ilha”. Este facto deve-se principalmente à localização central da sua residência, facilitando o acesso à cidade (lugares, redes e serviços), e que permite concretizar, de algum modo, o “direito à cidade” [4] destes habitantes da cidade invicta. Não obstante as suas condições deficitárias de habitabilidade, o espaço que marcam no mapa urbano através do seu lugar de residência permite a estes urbanitas auferir de um “capital urbano” do qual não querem prescindir, pois o mesmo torna-se precioso face às múltiplas dificuldades sociais e económicas com as quais se deparam no quotidiano.

Como já referido, a Rede Inducar construiu um projeto de intervenção social e artística intitulado “Retratos das Ilhas: Bonfim para além das Fachadas”, o qual foi financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian (Programa Partis — Práticas Artísticas para a Inclusão Social) e implementado na freguesia do Bonfim, entre janeiro de 2016 e junho de 2018. É necessário destacar o contexto atual de uma cidade em mudança devido ao acelerado processo de turistificação, ao qual se tem aliado um aumento exacerbado das dinâmicas de especulação imobiliária. Fui responsável pela avaliação externa deste projeto, tendo assim acesso privilegiado aos seus resultados.

No domínio do projeto, a fotografia participativa e as artes performativas foram usadas na abordagem às memórias e às sociabilidades envolvidas na construção quotidiana destes espaços urbanos. Através da intervenção comunitária usando a fotografia, o teatro e a performance, foram reveladas as histórias, as condições de vida, os laços de pertença e as sociabilidades que constroem estes espaços, assim como foram promovidos processos de participação social urbana.

As coordenadoras e mediadoras Patrícia Costa e Susana Constante Pereira e os artistas Maria João Mota, Helena Oliveira (teatro/performance), Paulo Pimenta (fotografia) e Miguel Ramos (música), que trabalharam neste projeto, encontraram territórios difíceis de “penetrar”. Os habitantes das ilhas do Bonfim exprimiam um “sentimento de insularidade” presente no modo como representavam e viviam o seu “lugar” na cidade. Foi, portanto, um desafio trabalhar a “permeabilidade social e cultural” destes territórios, como mencionado pelos elementos da equipa do projeto.

Do trabalho realizado, resultou um espetáculo de artes performativas, a peça “Cal”, criação artística da Pele, Espaço de Contacto Social e Cultural [5] (estreada no dia 20 de setembro de 2017 no âmbito do Festival Mexe), a exposição de fotografias da autoria de Paulo Pimenta e de participantes do projeto, crianças e séniores (inaugurada no dia 25 de novembro de 2017 no Centro Português de Fotografia), assim como um conjunto de debates com a população que contaram com a participação de representantes de entidades parceiras como a Câmara Municipal do Porto e a Junta de Freguesia do Bonfim.

A reflexão sobre o conceito de ilha, incluindo as representações sociais sobre a relação socioespacial entre as ilhas e a cidade do Porto (isolamento versus abertura) e a pertinência do processo de “requalificação” das ilhas, foi realizada com recurso às ferramentas das diferentes expressões artísticas envolvidas. Focalizando identidade e memória das vivências nas ilhas, foi possível refletir sobre o que foram no passado e o que significam simbolicamente hoje estes espaços urbanos. Foi ainda motivada a participação social através da articulação entre o trabalho artístico e os debates organizados pela coordenação do projeto.

Os participantes, mulheres e homens de diferentes idades (dos 10 aos 90 anos), participaram nas várias fases do projeto, tendo trabalhado numa lógica coletiva. Eles possuíram uma grande autonomia na realização de tarefas e no acesso e gestão dos recursos envolvidos, tal como se pode comprovar pelo acompanhamento das várias atividades. Neste sentido, pôde apurar-se um elevado sentimento de propriedade face ao projeto, sendo que é de reportar que os participantes se sentiram verdadeiramente criadores das peças artísticas em causa.

A partir das entrevistas de caráter biográfico, foi ainda possível perceber que foram desenvolvidas competências por parte dos participantes, prontas a usar noutros domínios de vivência. O trabalho de memória realizado através da recolha fotográfica facilitou reconfigurações identitárias a partir de uma reflexão em coletivo, tal como referido pelos próprios participantes. O trabalho corporal e de voz permitiu alcançar um nível avançado de segurança no âmbito laboral, por exemplo. De igual modo, a tomada de consciência da situação das ilhas no Bonfim a partir do trabalho artístico e da dinamização dos debates, permitiu desenvolver competências de participação social e cívica que são preciosas para a dinâmica urbana e para a realização pessoal de cada um dos urbanitas que participaram no projeto.

Depois de dois anos e meio de intenso trabalho com esta comunidade, fica o desejo de continuidade deste olhar para além das fachadas, cuidando as pessoas e procurando soluções coletivas para as ilhas no Porto.

Notas

[1] Teixeira, M.C. (1996), Habitação Popular na cidade Oitocentista — As Ilhas do Porto, Lisboa: FCG/JNICT.

[2] http://www.inducar.pt/

[3] Vásquez, I. B. & Conceição, P. (coord.) (2015), “Ilhas” do Porto: Levantamento e Caracterização, Porto: Câmara Municipal do Porto.

[4] Lefebvre, H. (1972), Le Droit a la Ville suivi de Espace et Politique, Paris: Anthropos.

[5] https://www.apele.org/

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