Dimensão analítica: Cultura, Artes e Públicos
Título do artigo: Política cultural autárquica
Autor: José Luís Borges Coelho
Filiação institucional: Coral de Letras da Universidade do Porto
E-mail: jlborgescoelho@clix.pt
Palavras-chave: cultura, política cultural, poder local.
Antes de abrir, em sentido figurado, as hostilidades, sobre matéria cuja vastidão e complexidade, nos dias de hoje, não é dado a nenhum ser humano o poder de abarcar em pleno conhecimento de causa, temos que assentir num mínimo de entendimento que não nos ponha a uns a falar em alhos e aos outros a perceber ou a responder em bugalhos. Para dizer que, pela nossa parte, aqui se dá por adquirido que todos conhecemos, de um modo intuitivo (que outro se não vê que possa ter sido), os contornos do debate antropológico/sociológico sobre o sentido de cultura. E que, conhecendo-os, foi de afunilamento em afunilamento que viemos a centrar-nos nisso a que também todos – parece – nos referimos, quando nos propomos debater a política autárquica para a cultura, ou seja, mais coisa menos coisa, no que vem sendo a política de apoios, ou de falta deles, às artes performativas.
Aqui, na realidade, não curamos do que fazem as bibliotecas, os museus, os arquivos, ou os muito periféricos serões bonjoiosos, no desenvolvimento das competências que lhes estão cometidas, nem nos ocupamos dos pontuais fogachos que, ora a Presidência ora qualquer dos pelouros, entendam, em especiais ocasiões, promover, como quem acende um lustre, em dia festivo, para impressionar as visitas. Não.
Não nos ocupará, outrossim, o que as grandes instituições de cultura da Cidade, saudavelmente, e de um modo progressivamente mais satisfatório, estão continuadamente oferecendo aos seus naturais ou a quem, em razão da qualidade da oferta, nos visita. Não viemos aqui para discutir Serralves, a Casa da Música ou o Teatro S. João e seus apêndices.
Aliás, no que às fundações respeita, uma vez protocolados os termos da participação autárquica quer nos montantes fundacionais, quer nas transferências anuais, não seria de escorreita prática que intentasse qualquer autarca de turno subordiná-las às suas particulares visões sobre o objecto das instituições em referência, sujeitá-las ao seu alvedrio, menos ainda ao seu capricho. Donde não carecerem as fundações de vir à liça. Muito menos as instituições que são da inteira alçada do poder central.
Pois se de nada disso vimos tratar aqui, a que vimos então? O que mais resta?
Já o dissemos: a tratar do que, ainda assim, e no terreno das artes performativas – música, teatro, bailado, circo (o novo ou o menos novo), cinema, audiovisual, seus cruzamentos e seus derivados, é o essencial.
– Mas, então, não tem a música a sua casa?
– E o teatro, e a ópera, e o bailado, e o circo, estarão assim tão sem abrigo?
– Não tem o próprio cinema, para além da profusão de salas que há por todos os centros comerciais, a sua casa, ainda se permanece – sem explicação – fechada a que um dia se lhe mandou erigir, a pretexto de Oliveira?
– Não se alberga ou se desenrola, nesses lugares, o essencial do que a essas artes respeita?
Concordaremos em que são esses os sítios de excelência, vocacionados para acolher o melhor das artes a que cada um deles, com pontuais derivas polivalentes, se consagra.
– E, pois, não é exactamente nisso que reside o essencial?
Diremos redondamente que não. Que não é. Que, sendo tudo isso imprescindível, numa Cidade que se orgulha das suas tradições e se quer – apesar dos múltiplos e alarmantes indicadores, e enquanto o cerco se aperta constantemente à sua volta – aberta à Europa e ao Mundo, diremos que, sendo tudo isso obrigatório, não é o fundamental.
De muitos pontos de partida se poderia arrancar para a demonstração insofismável do que afirmamos, mas, atendendo ao timing, a dois essenciais teremos de os reduzir. E são eles:
– o ponto de partida da oferta – o lado dos artistas das várias artes; e
– o ponto de partida dos (reais e potenciais) destinatários dela – não excluindo a forasteira, a inteira população do Porto.
É que, num caso, como no outro – haveremos todos de convir – a parte mais gorda fica de fora. Fica a da oferta artística (real e potencial) que não encontra acolhimento nas casas de referência; fica a da procura, porque, como todos muito bem sabemos, a esmagadora maioria dos habitantes da Cidade, ou por manifesta falta de apetência, ou pela consideração de que nada daquilo se lhe destina (a implica, lhe diz respeito, foi feito para ela), não entra nessas casas. Aí está uma realidade em que a divisão de classes se mete pelos olhos dentro: lugares que são para uns irresistíveis pólos de atracção podem ser também, do mesmo passo – e são-no, de facto –, para a grande massa da população, lugares de exclusão; objectos culturais que fazem se não as delícias ao menos o polimento de uns quantos privilegiados deixam, por muita espécie de circunstâncias, a esmagadora maioria, na mais apática das indiferenças; ou, numa ínfima percentagem, na percepção desesperada de que a sua baixa condição social, antes da económica, lhes veda o acesso a um mundo que consideram dos ricos.
Então, se são em muito maior número os artistas sem um tecto dourado que os que logram produzir-se regularmente nos templos que erigimos para o mais alto culto das artes, e é multidão o número daqueles que, mesmo não o suspeitando, minguam de fome e sede daquela parcela dos bens de cultura que o convívio com as artes proporciona, que permanecem – digamo-lo sem rodeios – em estádios de absoluto subdesenvolvimento cultural/artístico, significa isso que está aí instalado, como, aliás, o está em todos os outros domínios da vida social, o maior dos contra-sensos. E, também aqui, o fosso, ao invés de diminuir, se acentua.
Meter, nesta matéria, as leis do mercado corresponde, a prazo, minhas senhoras e meus senhores, ao definhamento geral do espírito.
Ora, se é o alimento ao dispor rico em proteínas e as fomes prolongadas criaram na grande massa do povo anorexia tão funda que o estômago lhe não suporta senão as mistelas mais debilitantes, e mais deletérias, não poderá qualquer governante que seja que tenha dois dedos de sentido das responsabilidades deixar de se preocupar, e de procurar, e de disponibilizar terapias sistemáticas de recuperação.
O movimento de implantação de casas da cultura, que em França conheceu um extraordinário impulso desde o pós-guerra, visando repetir o que fora o movimento de escolarização geral da população de um século atrás, movimento que, entre nós, conheceu algum alvoroço nos alvores de Abril, onde vai ele? Chegou sequer a reflectir-se nos bairros? A Câmara do Porto – ouvimo-lo aqui repetido vezes sem conta – é o maior senhorio da Cidade: compete-lhe ser apenas o senhorio que se sabe? Não resultam dessa insensibilidade tantos dos problemas que ali se albergam?
Não será uma das primeiras obrigações dos decisores políticos criar e desenvolver em permanência as condições que catapultem o pleno florescimento do espírito humano? É por má sina que são mais inclinados a fazer o contrário?
As organizações internacionais onde Portugal tem assento fartam-se de produzir alertas que ao depois, ao menos aqui, não vêm a passar de votos pios. A Unesco é um extenso repositório de exemplos disso mesmo. De um comunicado para a imprensa, dado no fim de uma reunião de alto nível, em Veneza, no quadro da U.N.E.S.C.O, sobre o desenvolvimento cultural, ocorrida no já longínquo dia 2 de Setembro de 1970, onde tomaram assento os mais altos funcionários de oitenta e cinco países, entre os quais mais de meia centena de ministros e secretários de estado, se extrai o que segue:
“A conferência insistiu no facto de que, nos países tecnicamente avançados, o aumento do tempo de lazer e a elevação do nível educativo da população abrem a via a largas possibilidades novas no plano cultural. Essas possibilidades deveriam ser utilizadas à escala de cada nação para contrabalançar os efeitos nocivos das transformações tecnológicas e da hipercomercialização…”
Comentários?…
Nota: Texto é uma adaptação de intervenção produzida na Assembleia Municipal do Porto, em 12 de Fevereiro de 2007.
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