O hara-kiri da filosofia escolar (I)

Dimensão analítica: Educação e Ciência

Título do artigo: O hara-kiri da filosofia escolar (I)

Autor: Sousa Dias

Filiação institucional: Instituto Cultural D. António Ferreira Gomes

E-mail: sousadias@essr.net

Palavras-chave: filosofia, filosofia escolar, ensinável/inensinável.

  1. Filosofia tout court e filosofia escolar. A filosofia e o seu ensino. A ensinabilidade do filosófico. A questão é velha, e lá fora suscita estudos, bibliografias, grupos de investigação. Por cá quase nunca se ouve, nunca é uma questão em cima da mesa, mesmo entre os professores da disciplina. Praticamente só quando das reformas do sistema de ensino e, com elas, dos programas disciplinares. O que é, no mínimo, esquisito. Desde logo porque a filosofia, entre nós, está intimamente vinculada, em termos institucionais, ao seu ensino, e na sua visibilidade quase inteiramente se reduz à sua existência como matéria escolar. E porque, por outro lado, nunca como hoje foi tão controversa a legitimidade sociocultural do filosófico, a permanência de uma «necessidade» da filosofia e por isso também, ou mais ainda, do seu ensino. A ponto de aqueles que continuam a fazer filosofia, e não meramente a ensiná-la, cedo ou tarde se confrontarem com o sentido dessa sua prática, com a problemática justificabilidade contemporânea da filosofia e, explicitamente ou não, da sua pedagogia. Tudo se passa, porém, como se para a comunidade filosófica portuguesa, na sua efectiva composição uma imensa colectividade de ensinantes de filosofia, essa questão estivesse desde sempre, e de uma vez por todas, resolvida. Como se o simples reconhecimento oficial da filosofia como disciplina «universal e obrigatória» do ensino secundário e portanto como «parte» fundamental da cultura de Estado corporizada nos currículos escolares representasse a tácita prova de perseidade (noção da escolástica medieval para o que tem a qualidade de existir por si) quer da filosofia quer da sua transmissão pedagógica. O que se nos afigura, em especial face ao contexto global presente e ao modo como ele tende a transformar as funções e estruturas da cultura, da escola e dos sistemas de aprendizagem, uma perigosa ilusão auto-hipnótica. Para se ter uma ideia desta ilusão, tentaremos perspectivá-la, em traços esquemáticos embora, a partir daquela que nos parece ser a questão de fundo da filosofia escolar.
  2. O que faz a filosofia no ensino secundário? Qual o interesse dessa disciplina? Como actividade teórica, promotora de inteligibilidades, a filosofia mantém afinidades com as ciências. Mas, diferentemente delas, não possui processos, quer empíricos quer formais, de validação das suas especulações. Ela nada mais pode, enquanto prática de problemas e de conceitos, do que explicar os seus problemas, propor conceitos adequados a essas explicações e argumentar a pertinência, em si mesma indemonstrável, tanto destas como daqueles. A filosofia é pois por natureza «aporética» e desse modo uma forma de cognição sempre deceptiva, não «performativa», uma coisa socialmente inútil, ineficiente. Pelo que o ensino da filosofia carece de justificação social. Vê-se muito mal, por exemplo, o que a filosofia possa ter para oferecer, ou para se preservar como disciplina curricular, na óptica da escola-empresa, ou da entrega em curso das escolas, em todos os níveis, ao «mercado». Restaria, porém, uma outra razão de ser justificativa, uma justificação propriamente espiritual, uma função «formativa» da filosofia como expressão privilegiada da pura razão, fundamento da autonomia humana. Foi, aliás, essa função «emancipadora», tanto teórica (síntese reflexiva dos saberes) como pratico-moral (educação para os ideais universais da cidadania), que determinou a inclusão da filosofia nos planos de estudos da escola pública republicana e a sua posição nesses planos, à saída do secundário como «abóbada» crítica e, entre nós, ineximível componente da «formação geral» dos alunos. Mas também essa justificação parece difícil, para não dizer impossível, de aceitar, sobretudo se se tiver em conta os destinatários concretos desse ensino: alunos adolescentes situados na faixa etária dos 15 aos 17 anos. Porquê?

Fernando Gil, num lúcido texto de circunstância assumidamente «marginal», defendeu, antes de nós, esta mesma tese. Com ele interveio no debate provocado pela frustrada intenção da última reforma nacional do ensino em substituir a disciplina de filosofia por uma outra de história da cultura e das ideias. Aí explicou os motivos da injustificabilidade da escolarização da filosofia e mostrou como essa explicação tinha já sido dada, em termos definitivos, por Platão. Referia-se ao célebre discurso de Diotima no Banquete, onde o Eros filosófico é apresentado como filho da Miséria e do Expediente e herdeiro de ambos, «entre os dois». Comentava F. Gil: «pela mãe, a Filosofia é um saber inensinável, pelo pai, um saber inensinado. Pelos dois lados é exterior ao sistema escolar. A decisão filosófica é imotivada, anistórica, desinvestida» [1]. Exactamente: como prática não cultural de pensamento, como pensamento irredutível a um «conhecimento», a filosofia é estranha por essência ao sistema de ensino. A vontade de filosofar, o Eros filosófico, na infinita «irrazoabilidade» da sua emergência, na absoluta inensinabilidade da sua pulsão, não é interiorizável numa relação pedagógica. Foi o que também Kant vincou, no capítulo sobre a «arquitectónica da razão pura» da primeira Crítica e de novo na Lógica, esta impossibilidade de escolarizar a filosofia, de aprendê-la (e de ensiná-la). Porque — e esse é, justamente, o equívoco fundamental — em rigor a filosofia não é, não constitui, um saber. Não forma um «corpus» discursivo informativo que, como tal, pudesse ser objecto de comunicação, de trans­missão, de aprendizagem, de socialização pelo ensino (a filosofia como filha da Miséria). O único «saber» que a filosofia pode oferecer, a sua «parte» de cultura, é a sua própria história. Mas, em si mesma, e diversamente das ciências e das técnicas, a filosofia não é cultura, não é uma formação de cultura. É uma paixão especulativa sempre improvável, fundada em experiências, perplexidades, sensações e «visões» inderiváveis da história, e para a exploração problematico-conceptual das quais, de cada vez, ela não encontra «método» disponível (a filosofia como filha do Expediente). De resto, nunca a vitalidade da filosofia dependeu da sua implantação escolar ou foi afectada pela sua eventual desescolarização. De outro modo seria inexplicável que a inexistência de ensino secundário de filosofia na Alemanha ou na Inglaterra, por exemplo, não tenha impedido o estabelecimento nesses países de fortíssimas tradições de pensamento filosófico, cuja fecundidade se mantém no presente. Como seria inexplicável, em contrapartida, que sendo Portugal, desde há muito, o país europeu onde mais se ensina filosofia, a ausência de prática filosófica viva e regular seja uma das características tradicionais da cultura portuguesa. O caso português é, aliás, particularmente curioso, e não só por essa imensa desproporção entre a existência escolar da filosofia e a sua inexistência como movimento de criação e de crítica. Mas, mais ainda, por ser um caso em que, com toda a evidência, o ensino da filosofia tomou o lugar da própria filosofia. Com efeito, entre nós, e não apenas na sua «realidade» efectiva visível como também na sua concepção profissional corrente, mesmo nas universidades, a filosofia esgota-se numa esfarrapada imagem «pedagógica».

Nota:

[1] Fernando Gil, «Eros maltrapilho: na margem de um debate», Expresso, 5 / 3 / 1988.

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