Dimensão analítica: Mercado e Condições de Trabalho
Título do artigo: O trabalho em Portugal pelo olhar do cinema: contributos para uma área de investigação
Autor/a: Luísa Veloso e Frédéric Vidal
Filiação institucional: 1 ISCTE-IUL, CIES-IUL / 2 CRIA, ISCTE-IUL
E-mail: luisa.veloso@iscte.pt; frederic.vidal@iscte.pt
Palavras-chave: trabalho, cinema, representações sociais.
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Figura 1 – A visita oficial ao Barreiro
Fonte: A visita oficial ao Barreiro, 1933, autor não identificado [Col ANIM]
O trabalho desempenha um papel essencial na estabilidade e dotação de sentido das trajetórias dos indivíduos e grupos sociais e nos mecanismos de reconhecimento social. No entanto, tem vindo a sofrer processos vários de mudança que, no contexto atual de crise económica e emprego, exige equacionar a estruturação das identidades que sobre o trabalho se constroem, destroem e modificam.
No quadro da investigação «O trabalho no ecrã» [1], desenvolvida entre 2011 e 2015, procurámos desenvolver um enfoque particular sobre o trabalho, assumindo um enquadramento multidisciplinar, a partir do qual diferentes abordagens das ciências sociais e humanas (sociologia, história, antropologia) dialogaram com os questionamentos mais específicos dos estudos fílmicos. Partimos do princípio segundo o qual a análise das representações cinematográficas do trabalho deve prolongar e aprofundar estudos que têm tido por objeto a construção discursiva do mundo social [2].
Construindo um corpus de filmes sobre o trabalho disponíveis no Arquivo Nacional da Imagem em Movimento da Cinemateca Portuguesa, Museu do Cinema, realizámos um conjunto de análises de imagens selecionadas, evidenciando como o trabalho é representado no cinema e, logo, como este último desempenha um papel na configuração do primeiro, quer do ponto de vista prático, quer simbólico.
A investigação realizada permitiu chegar a uma proposta de abordagem alicerçada em quatro eixos analíticos: estrutural, situacional, socio-histórica e estudos de caso. Estes quatro eixos permitiram evidenciar representações distintas do trabalho no cinema.
A abordagem estrutural permitiu delimitar e organizar um corpus de filmes bastante diversificado sem recorrer a categorias de pensamento socio-históricas ou estéticas pré-estabelecidas. Os filmes que analisámos foram situados e classificados em função de um contexto histórico, político, ideológico e socioeconómico, ou da evolução das formas de produção cinematográfica em Portugal [3]. Assim se pode concluir que o trabalho está presente no património do cinema português no período considerado nesta investigação (desde os anos 1930 até aos anos 1980) e as representações evidenciadas abarcam, por exemplo, perspetivas próximas do poder político, mas também de ações revolucionárias após o 25 de Abril de 1974, pautadas pela vertente militante e em que o tema do trabalho ocupa um espaço nevrálgico.
A análise situacional focou-se na análise de representações do trabalho a partir de situações específicas. Um exemplo de uma situação é a pausa no trabalho, cuja análise permitiu evidenciar de que forma os momentos do não trabalho são mobilizados para mostrar, por exemplo, o trabalho agrícola [4] ou as múltiplas atividades de trabalho das populações junto ao rio Douro [5]. A análise desenvolvida permitiu evidenciar como o isolamento analítico de unidades dos filmes e a exploração da forma como dialogam entre si constituiu um caminho extremamente frutífero de compreensão das maneiras heterogéneas como o cinema representa o trabalho.
O eixo socio-histórico focou-se numa perspetiva analítica de cariz temático comum a determinadas abordagens das ciências sociais e humanas sobre o trabalho, revelando-se particularmente profícuo quando equacionada no quadro dos estudos fílmicos. A análise dos espaços de trabalho, dos usos da palavra associada ao trabalho e das representações dos gestos, máquinas e ferramentas de trabalho destacou como o cinema contribui para construir, reproduzir e transmitir determinadas perspetivas sobre o trabalho, permitindo refletir sobre a complexidade das realidades sociais sobre as quais – e no quadro das quais – os filmes foram realizados.
Finalmente, em quarto e último lugar, as representações cinematográficas do trabalho foram analisadas no âmbito de três estudos de caso, que correspondem a três tipos de géneros cinematográficos: o cinema institucional, focado na ação da Secção Cinema e Televisão da Junta de Acção Social, que permitiu perceber a sua importância do ponto de vista da receção, isto é, da criação de uma rede de exibição de filmes à escala nacional; o cinema militante, centrado na produção cinematográfica da cooperativa Cinequipa sobre as multinacionais em Portugal, um domínio da ação militante marcada pela contestação do sistema capitalista; e o cinema de empresa ou industrial, com base na produção cinematográfica sobre e promovida pela Companhia União Fabril (CUF), uma empresa pioneira em Portugal no século XX no uso do cinema como meio de divulgação da sua atividade e, logo, de uma imagem de modernidade e inovação. Baseados em abordagens e procedimentos técnico-metodológicos distintos, os estudos de caso potenciaram uma abordagem do cinema do ponto de vista da sua produção e uso e dos processos sociais de construção de memórias sobre o trabalho através do ou a propósito do cinema.
O cinema revelou-se-nos um campo extremamente frutífero de conhecimento da realidade do trabalho em Portugal no decorrer do século XX, permitindo compreender como, pelo seu intermédio, as representações que são veiculadas desempenham um papel incontornável na configuração da realidade social e, logo, na estruturação do tecido simbólico, memorial e identitário sobre o trabalho.
Notas
[1] Projeto (PTDC/IVC SOC/3941/2012) financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Para além dos autores deste texto, que coordenaram a investigação, a equipa de investigação incluiu também João Rosas (CIES-IUL), Emília Margarida Marques (CRIA), Jacques Lemière (Université de Lille 1) e Joâo Sousa Cardoso (CECL-UNL).
[2] Sewell, William H. (1980), Work and Revolution in France: The Language of Labor from the Old Regime to 1848, Cambridge: Cambridge University Press.
[3] Alguns exemplos das categorias constituídas para organizar os filmes em conjuntos são “A ideologia do ‘Trabalho Nacional (anos 1930 – anos 1950)”, que agrupa filmes com referências explícitas ao contexto político e ideológico do Estado Novo e que visam ilustrar ou celebrar a doutrina corporativa ou “A modernização do setor agrícola (anos 1940 – anos 1970)”, classificando filmes que ilustram ou descrevem a transformação do setor agrícola e das sociedades rurais a partir dos anos 1940.
[4] Veja-se, por exemplo, o filme Évora, 1929, de José César de Sá.
[5] Referimo-nos ao filme Douro, faina fluvial, 1931, de Manoel de Oliveira.
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