Da generalização da causa pública à generalização da forma privada – transformações e desafios das políticas culturais públicas em Portugal

Dimensão analítica: Cultura e Artes

Título do artigo: Da generalização da causa pública à generalização da forma privada – transformações e desafios das políticas culturais públicas em Portugal

Autora: Ana Roseira Rodrigues e Joana Ramalho

Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto / Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa e Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa

E-mail: ana.roseira.rodrigues@gmail.com / julouramalho@gmail.com

Palavras-chave: políticas culturais, instituições culturais, Estado.

Independentemente das diferentes formas da tutela da cultura no período democrático, todas elas incarnam o compromisso firmado na Constituição de 1976, nomeadamente o de proteger e garantir o direito à cultura, associando-a a um ideal de desenvolvimento, e reconhecendo-a como condição essencial de bem-estar e de liberdade.

Apesar da consagração constitucional, nos primeiros anos da Terceira República a cultura não se constituiu enquanto prioridade governativa. A cultura só se torna tema recorrente no discurso político ao longo dos anos 1980 e é sobretudo na segunda metade da década que se desenha um novo panorama na relação entre Estado e cultura. A questão da democratização da cultura concorre com a tendência, ainda tímida (que hoje certamente não o é), de desmonopolização, liberalização e privatização da actividade cultural do sector público. A crescente valorização da cultura culmina com o res(surgimento) em 1995 de um Ministério da Cultura [1] dotado de um plano de acção expansionista empenhado em criar condições de democratização, descentralização, internacionalização da cena cultural portuguesa. O intervencionismo defendido pelo Estado e a responsabilização na salvaguarda do direito à cultura fazem-se igualmente acompanhar por um visível emaranhamento entre cultura, economia (cultural), marketing e competitividade territorial, produção de cidade e renovação urbana.

O investimento expressivo no sector cultural, sobretudo a partir de meados de 1990, cria e/ou reforça várias instituições culturais – museus, teatros, centros culturais, salas de concerto, etc. – que em anos mais recentes se distanciam progressivamente da tutela directa do governo. Várias causas contribuem para esta transformação. Num passado mais recente, a crise económica e financeira pôs a nu o problema da dívida pública tornando o “despesismo” do Estado um dos principais alvos a abater, nomeadamente pelas secções mais (neo)liberais do espectro político. Sobretudo desde 2011, com a intervenção do Programa de Assistência Financeira da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional, as políticas culturais não escapam à aplicação de medidas de austeridade. O incentivo à iniciativa privada no apoio à cultura, como “complemento” à intervenção estatal, é hoje reflexo da necessidade de reformar o peso do Estado mas também da ideologia política vigente. Porém não é de agora a convergência entre os modos de gestão específicos do meio empresarial e a burocratização das instituições públicas. O Novo Institucionalismo ou o New Public Management dão conta dessa convergência formal (e não só) [2]. Esta tendência está alinhada com a generalização de um princípio de competição, de mensuração da performance (e da performance da mensuração), de mercantilização e de privatização, que ocorre entre nós sobretudo a partir da década de 2000, mas de que encontramos indícios vinte anos antes.

No sentido de racionalizar e/ou racionar recursos, emergem novas formas jurídicas que aproximam as instituições culturais de agentes económicos privados, absorvendo uma lógica empresarializada em que ganha terreno o princípio de rentabilidade, em que o Estado recua financeiramente (mas não só). A prestação de contas baseia-se cada vez mais em indicadores culturais e económicos que ajudem à captação de verbas do privado, e que criem estruturas mais “competitivas” e “atraentes”. As instituições culturais desenvolvem cada vez mais, paralelamente a uma estratégia cultural, uma estratégia de mercado. O caso das entidades públicas empresariais (e.g. TNSJ, TNDMII, OPART) ou de fundações (e.g. Casa da Música, Serralves) são exemplares: as primeiras, integrantes das estruturas de Administração Indirecta do Estado, são entidades de natureza empresarial, com fim lucrativo, cujo capital pertence a organismos públicos; as segundas são entidades do terceiro sector, sem fins lucrativos, com uma orgânica própria e derivadas de um gesto de dotação financeira, individual e/ou colectivo.

O Estado, que garantia a prestação de um serviço público tutelando as instituições vocacionadas para tal, passa cada vez mais a um elemento promotor de actividades e cooperante com instituições de utilidade pública de direito privado, i.e. o Estado de “sozinho” passa a “acompanhado”. A tendência dos últimos anos aponta para uma progressiva desestatização do sector: as instituições culturais públicas são cada vez mais privadas. Em muitas delas, o Estado vê-se lado a lado com a sociedade civil, com as empresas, com interesses económicos privados, seguindo modelos de gestão privada, voltados para o auto-financiamento. Cultura, mercado, turismo, requalificação urbana, grandes eventos, animação cultural são comensais da mesma mesa.

Deste modo, a generalização da “forma privada” às instituições de “causa pública” obriga a reflectir em que medida os compromissos de democracia e democratização cultural firmados na letra da lei se articulam com a privatização das instituições culturais públicas. A opção pela natureza jurídica privada da arquitectura institucional encontra numa maior autonomia e numa maior margem de decisão argumentos de peso, e pode servir para contornar mecanismos democráticos de participação e controlo (sem prejuízo de um princípio de independência artística e rejeitando todas as formas de manipulação demagógica eventuais).

A interpelação impõe-se: Como se mantém a vocação de serviço público de uma instituição em equilíbrio com a gestão corporativa e a lógica de mercado?

Consideramos que os vínculos ao mercado e à sociedade civil não são despiciendos, desde logo porque representam um maior interesse no sector cultural. Aliás, não cremos que um Estado omnipotente, omnipresente, omnifinanciador das actividades culturais seja o cenário desejável.  No entanto, até onde se pode esticar a corda da retracção do Estado? A falta de (capacidade de) financiamento não deve em caso algum ser pretexto para a desresponsabilização do Estado do seu dever constitucional de garantir o direito universal à cultura.

A preocupação central deveria ser: “qual a política da cultura definida pelo Estado?”. Se as instituições governativas tiverem a montante uma resposta coerente e estruturada, os privados deverão saber acompanhá-la. No entanto, se a resposta for evasiva, a tendência será a de uma indistinção entre política cultural e negócio de lazeres, tempos livres e entretenimento. Assim, vemos na articulação entre Estado (central e local e organismos dele dependentes), sociedade civil, empresas, organizações supranacionais, tecido associativo, uma tendência frutuosa, mas apenas se se destacarem, a cada um dos níveis enunciados, a(s) causa(s) públicas a que respondem, sob pena de nos confrontarmos com um serviço público que, por se tornar privado na sua gestão, deixa de ser público na sua vocação.

Notas

[1] Desde o I Governo Constitucional que a Cultura foi tutelada por uma Secretaria de Estado, alternadamente sob a alçada do Ministério da Educação ou da Presidência do Conselho de Ministros, com a excepção do IX Governo Constitucional (1983-1985) que contou com um Ministério da Cultura autónomo.

[2] DiMaggio, P. e W. Powel (ed.) (1991), The New Institutionalism in Organizational Analysis, Chicago, Chicago University Press; Hood, C. (1991), “A Public Management for All Seasons”, Public Administration, 69: pp. 3-19.

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