Da (ir)responsabilidade profissional à reforma dos Conselhos Superiores na Justiça

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: Da (ir)responsabilidade profissional à reforma dos Conselhos Superiores na Justiça

Autor: João Paulo Dias

Filiação institucional: Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra

E-mail: jpdias@ces.uc.pt

Palavras-chave: Responsabilidade profissional, magistraturas, governação.

Há precisamente 10 anos atrás, em 2004, foi lançado o livro “O Mundo dos Magistrados: a evolução da organização e do auto-governo judiciário” (Editora Almedina), da autoria de João Paulo Dias (autor deste artigo), resultante da tese de mestrado orientada por Boaventura de Sousa Santos, no âmbito dos trabalhos desenvolvidos no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra [1]. Este trabalho, que fez a análise das competências e desempenho dos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público, concluiu, entre outras coisas, que a reforma do modelo de governação das magistraturas (e também da gestão dos funcionários judiciais) era premente e constituía um dos fatores para a manutenção de uma cultura judiciária de não responsabilização das magistraturas, de falta de transparência na gestão dos recursos humanos e na avaliação do desempenho profissional e de indefinição das prioridades na gestão do sistema judicial.

Na apresentação do livro, que ocorreu no Centro de Estudos Judiciários, estiveram presentes 3 magistrados. Noronha de Nascimento, na altura Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM), que alegou não ter tido tempo para estudar aprofundadamente o trabalho, algo que se manteve nos anos seguintes enquanto Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (e por inerência do CSM). Dias Borges, então Procurador-Geral Distrital de Lisboa, em representação do então Procurador-Geral da República Souto Moura, que contestou e discordou da validade e conclusões do estudo. E Joana Marques Vidal, então Procuradora da República (atual Procuradora-Geral da República), que concordou com os resultados obtidos e manifestou concordância com a maioria das propostas aí apresentadas.

10 anos depois o estudo é estranhamente atual, algo que apenas não surpreende pela tradicional desvalorização dos atores políticos e judiciais dos contributos das ciências sociais para a avaliação e elaboração de políticas públicas da justiça (tal como, infelizmente, noutras áreas de ação governamental). A análise da arquitetura do modelo de governação do sistema judicial mostrou claramente que a repartição das competências de gestão por 4 conselhos era completamente inadequada e promovia a cultura de desresponsabilização e ação corporativa, num “jogo de empurra” a que ainda hoje assistimos de forma inaceitável.

A governação do sistema judicial está atualmente repartida entre Conselho Superior da Magistratura, Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Conselho Superior do Ministério Público e Conselho dos Oficiais de Justiça. Juntos são responsáveis pela gestão dos recursos humanos (juízes dos tribunais judiciais e tribunais administrativos e fiscais, magistrados do Ministério Público e funcionários judiciais), pela avaliação profissional e pelo exercício da ação disciplinar. Os resultados estão à vista: falta de coerência na gestão dos recursos humanos, em que cada Conselho estabelece as suas prioridades de colocação nos tribunais, com pouca articulação entre si; baixa capacidade de gestão dos tribunais/serviços e processos que, em determinado momento, necessitam de reforço de meios humanos; ausência de transparência nos processos de avaliação dos resultados da avaliação profissional e exercício da ação disciplinar, com prevalência de uma atuação corporativa; incapacidade de efetuar uma gestão global dos recursos humanos, definindo parâmetros e prioridades para uma gestão eficiente da escassez dos meios em função da relevância das situações precárias ou dos processos de maior exigência/complexidade.

A proposta feita de fusão dos 4 Conselhos visava exatamente constituir um órgão de governação do sistema judicial que introduzisse uma nova cultura de responsabilidade e profissionalizasse a gestão dos recursos humanos, atendendo às prioridades definidas política e judicialmente, com a introdução de mecanismos de flexibilização e capacidade técnica de atuação, clarificando e centralizando as responsabilidades. Entre outras propostas, indicavam-se as seguintes: 1) um só conselho superior, composto por juízes, magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais, representantes do poder político (legislativo e executivo) e profissionais com competências ao nível da gestão dos recursos humanos, planeamento e organização; 2) profissionalização dos membros do conselhos, estando todos a tempo inteiro para garantir a sua operacionalização; 3) aumento da capacidade de intervenção nos tribunais, de forma a poder reforçar rapidamente as equipas que estão em situação deficitária grave ou em processos de maior complexidade; 4) garantia de transparência da ação regular e prestação de contas públicas junto dos restantes órgãos de soberania, com a publicitação de todas as atividades de forma integrada (os atuais relatórios de atividades parciais não permitem uma análise agregada da informação, contendo inclusivamente dados contraditórios); 5) construção de um programa único de gestão do sistema judicial, na recolha e tratamento da informação estatística, atualmente repartido entre os conselhos e a Direção Geral da Administração da Justiça (DGAJ); 6) aproveitamento efetivo da recolha de informação contida nos relatórios de inspeção profissional, que pouco mais contam do que para a avaliação do profissional; 7) e dotação deste conselho com os meios humanos e financeiros necessários a uma gestão autónoma e responsável do sistema justiça (concentrando parte das competências atualmente na DGAJ), à imagem de alguns modelos em vigor, por exemplo, na Holanda, Suécia ou Irlanda.

Mais uma vez, Portugal avança para uma reforma estrutural, como é da organização judiciária, sem acautelar o seu modelo de governação, mantendo-o sob controlo estreito do Ministério da Justiça. Tal como no passado, a gestão dispersa e atomista do sistema levará a uma reforma falhada sem responsáveis. Num momento em que se fundem serviços do Estado por razões meramente financeiras, por vezes com consequências negativas para a prestação do serviço público, é incompreensível a manutenção de um modelo de governação que mantém uma cultura de irresponsabilidade judicial que apenas favorece quem do sistema judicial se pretende aproveitar. Os casos recentes de ineficácia e incompetência dos tribunais, com as prescrições dos processos nos casos BPN, BCP, entre outros, são exemplos claros que o poder político pretende manter a governação do sistema judicial espartilhada e inoperante. Por um lado, mantém-se níveis baixos de independência interna da justiça, sem reforço da responsabilização e controlo mútuo de juízes, magistrados do Ministério Público e funcionários judiciais, dispersos por conselhos que apenas têm competências de intervenção parcelares. Por outro, mantém-se um forte controlo da independência externa nas mãos do Governo, com o controlo da gestão dos meios financeiros e físicos, incluindo a decisão de reforço dos meios humanos, limitando assim a capacidade de intervenção dos tribunais. Entre atuações perturbadoras do funcionamento da justiça, como é o caso da reforma do mapa judiciário, e omissões graves, por falta de reforma do modelo de governação e responsabilização do sistema judicial, emerge cada vez mais a distinção de justiça para “ricos” e justiça para “pobres”, como vários protagonistas têm vindo a chamar a atenção (incluindo magistrados).

Termina-se, repetindo o que já em 2004 se escreveu: “se uma justiça eficaz, transparente e rápida é fundamental para o reforço de uma democracia representativa, o envolvimento dos cidadãos, dos cientistas e dos movimentos cívicos na tomada de decisões é crucial para o reforço dos mecanismos de democracia participativa, conferindo uma maior legitimidade à própria justiça, pilar essencial de um Estado democrático. Deste modo, a independência judicial deve ser uma independência democrática, e não, como por vezes tende a ser discutida e colocada, uma independência corporativa.” A responsabilidade está nas mãos dos atuais responsáveis políticos e judiciais. A história os julgará pelos resultados alcançados.

Nota

[1] Dias, João Paulo. 2004. O Mundo dos Magistrados: a evolução da organização e do auto-governo judiciário. Coimbra: Editora Almedina.

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