Horários de trabalho por turnos: Aspectos biológicos e (também) sociais

Dimensão analítica: Mercado e Condições de Trabalho

Título do artigo: Horários de trabalho por turnos: Aspectos biológicos e (também) sociais

Autora: Isabel S. Silva

Filiação institucional: Escola de Psicologia, Universidade do Minho.

E-mail: isilva@psi.uminho.pt

Palavras-chave: trabalho por turnos, horários de trabalho, organização do tempo de trabalho.

No presente artigo de opinião procuro partilhar algumas reflexões sobre a problemática do trabalho por turnos, reflexões essas resultantes da minha experiência de investigação sobre as consequências (negativas e positivas) associadas a este modo de organização do tempo de trabalho bem como das possíveis intervenções no sentido de minimizar os efeitos negativos.

Embora o que se entende por trabalho por turnos possa variar entre autores, tipicamente este conceito engloba a sucessão de equipas de trabalho de modo a que o período de funcionamento de uma dada organização se possa prolongar, incluindo o prolongamento até às 24 horas diárias. De acordo com a Directiva 2003/88/CE [1], o trabalho por turnos é definido como “qualquer modo de organização do trabalho em equipa em que os trabalhadores ocupem sucessivamente os mesmos postos de trabalho, a um determinado ritmo, incluindo o ritmo rotativo, que pode ser de tipo contínuo ou descontínuo, o que implica que os trabalhadores podem executar o trabalho a horas diferentes no decurso de um dado período de dias ou semanas” (ponto 5, Artigo 2º), encontrando-se tal noção de trabalho por turnos incorporada na legislação nacional [2].

De um modo geral, a investigação sobre os efeitos do trabalho por turnos tem indicado que esta modalidade horária pode ter um impacto negativo na saúde, na vida familiar e social do/a trabalhador/a e também do ponto de vista ocupacional, em especial ao nível da segurança e do desempenho. Tais dificuldades, grosso modo, estão associadas, por um lado, à inversão do ciclo circadiano actividade-repouso (i.e., trabalhar de noite e dormir durante o dia) e, por outro, ao conflito que pode existir entre o tempo de trabalho e a organização temporal da sociedade, donde sobressaem os períodos ao final da tarde/noite e ao fim de semana [3, 4]. Como se depreende da exposição anterior, nem todos os horários de trabalho por turnos se encontram sujeitos ao mesmo tipo de “conflito”, quer “biológico” (i.e., susceptível de perturbar os ritmos circadianos), quer “social” (i.e., eventuais dificuldades acrescidas na organização e participação em actividades familiares e/ou sociais). Por exemplo, podemos ter duas configurações horárias em que apesar de ambas contemplarem trabalho nocturno, uma pode implicar que o/a trabalhador/a trabalhe sempre de noite de segunda a sexta-feira (carácter fixo) e, outra, pode implicar a alternância com os turnos da manhã e da tarde (carácter rotativo) e a realização de trabalho ao fim de semana.

Não obstante as diferenças que podem existir na organização dos diferentes sistemas de turnos (e, por vezes, tal diversidade é visível na mesma organização), a investigação sobre esta problemática tem-se centrado sobre horários de trabalho que exigem a realização de trabalho nocturno, de modo fixo ou rotativo. A este interesse não estará certamente alheio o custo da (in)adaptação “biológica” resultante da inversão do ciclo de actividade-repouso, tendo a evidência disponível indicado, de facto, que o impacto negativo ao nível da saúde e da segurança ocupacional ocorre particularmente em horários que exigem trabalho nocturno, de modo regular ou alternado [3, 4].

Não obstante a enorme relevância das queixas ao nível da saúde (sendo particularmente frequentes as relativas ao descanso/sono e as relacionadas com a alimentação/digestivas), são igualmente frequentes as queixas em termos de perturbação da vida familiar e/ou social, sobretudo se o sistema de turnos implica a realização de trabalho em períodos socialmente muito valorizados a este nível sendo que, neste caso, aspectos sócio-culturais poderão assumir uma grande influência. Porém, a investigação sobre a compreensão dos “aspectos sociais” do trabalho por turnos, em comparação com a compreensão dos “aspectos biológicos”, tem sido menos abundante e, sobretudo, menos suportada conceptualmente. Gadbois [5], entre as razões que avança para explicar tal discrepância, refere, por exemplo, a menor participação de investigadores/as das ciências sociais na compreensão desta problemática.

A menor ênfase nos aspectos familiares e sociais associados ao horário de trabalho por turnos também está presente, quanto a nós, na própria legislação. Considerando a Directiva a que já fizemos referência [1], nota-se que os aspectos relativos à saúde e segurança dos/as trabalhadores/as são enfatizados (e, quanto a nós, bem), embora a preocupação quanto às dimensões familiares e sociais já não seja assim tão evidente.

Em suma, a problemática do trabalho por turnos é complexa e multifacetada, envolvendo aspectos biológicos, familiares, sociais, mas também organizacionais (por ex., desenho do próprio sistema de turnos). Não obstante a relevância das dimensões mais biológicas (ou, se quisermos, associadas aos “ritmos circadianos”) na compreensão dos efeitos do trabalho nocturno, este tipo de organização do tempo de trabalho envolve, como aliás, indica igualmente a literatura disponível, dimensões de natureza social. Porém, essa mesma literatura tem indicado a necessidade de aprofundamento dessa mesma realidade, sobretudo do ponto de vista conceptual.

De acordo com o quinto Inquérito Europeu às Condições de Trabalho [6], 17% dos/as trabalhadores/as da União Europeia (27 Estados-Membros) realizava trabalho por turnos em 2010. Se atendermos que a organização do tempo de trabalho é um elemento crítico do ponto de vista das condições de trabalho pelo carácter estruturante que exerce nas outras esferas da vida, estamos em crer que a relevância de tal problemática (e seu estudo) manter-se-á nos próximos tempos.

Notas:

[1] Parlamento Europeu (2003), Directiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Novembro de 2003 relativa a determinados aspectos da organização do tempo de trabalho, Jornal Oficial da União Europeia, L299, 18/11/2003, pp. 9-19.

[2] Assembleia da República, Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro (Aprova a revisão do Código do Trabalho).

[3] Silva, Isabel Soares (2008), Adaptação ao trabalho por turnos. Dissertação de Doutoramento em Psicologia do Trabalho e das Organizações, Braga, Universidade do Minho. [http://hdl.handle.net/1822/7723]

[4] Silva, Isabel Soares (2012), As condições de trabalho no trabalho por turnos: Conceitos, efeitos e intervenções, Lisboa: Climepsi Editores.

[5] Gadbois, Charles (2004), Les discordances psychosociales des horaires postés: Questions en suspens, Travail Humain, 67(1), pp. 63-85.

[6] European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions – Eurofound – (2012), Fifth European Working Conditions Survey, Publications Office of the European Union, Luxembourg. doi:10.2806/34660.

 

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