Dimensão analítica: Condições e Estilos de Vida
Título do artigo: O étnico como performance e performatividade
Autor: Nuno Oliveira
Filiação institucional: CIES ISCTE-IUL e Númena.
E-mail: nuno.oliveira@numena.org.pt, nuno.filipe.oliveira@iscte.pt.
Palavras-chave: performatividade, consumo, étnico.
Judith Buttler distingue “performance” de “performatividade” [1]. Esta distinção encerra, como é sabido, uma crítica a qualquer tentativa de essencializar a identidade. Não existe um self real, autêntico, por detrás da máscara: a identidade é algo que se “faz”. E assim como Goffman argumenta não a simplicidade da constatação que desempenhamos papéis enquanto pessoas, mas a mais profunda intuição de que os papéis que desempenhamos é que fazem de nós pessoas, também Butler desloca o problema da autenticidade do self para o campo do desempenho. A máscara é a única verdade na ordem da teatralização constitutiva da identidade.
Tanto assim é que o conceito de performance pode levar-nos a pensar que o género é uma performance (um desempenho) no sentido de assunção de um papel, o que pressupunha a existência de um sujeito anterior a essa performance, ou seja um “alguém” que desempenhe um papel. Mas é o inverso, e é justamente isso que se encontra contido no termo “performativity”. Ou seja, no primeiro (performance) temos um sujeito; no segundo (performativity) não temos. Enquanto categoria social, ele apenas existe como produto das instituições, de uma ordem institucional que produz a subjectividade, ou como diz Butler, “que polícia a aparição pública “ da categoria.
No caso do étnico, não nos interessará por conseguinte indagar sobre um possível núcleo que recobrisse uma determinada autenticidade representada enquanto identidade – a velha questão da etnicidade primordial ou situacional – mas antes aplicar-lhe a noção de performatividade. Trata-se de afirmar que o étnico não pode apenas ser descrito, ele é constituído no acto dessa mesma descrição.
A vertente do étnico enquanto desempenho liga-se estreitamente a versões da etnicidade enquanto opção, ou objecto de consumo, ou mesmo o étnico chic, do qual o turismo étnico constitui o aspecto mais representativo. Este é um étnico policiado e a sua aparição pública é por definição regulada. Um dos aspectos centrais desta regulação é a sua estetização. Ou seja, regulação através da sua estetização. É aqui que devemos situar os festivais interculturais que se replicam pelas capitais mundiais.
O turismo é produto e sustentáculo de uma cultura globalizada do consumo que é procurada por trabalhadores e consumidores com extrema mobilidade. A procura do exótico ajusta-se bem aos “especialistas analíticos” das novas classes médias-altas que procuram a autenticidade naquilo que é representado como singular nas cidades. Os membros desta classe, a classe criativa na acepção de Florida, buscam não o consumo da cidade, mas a capacidade de a experimentar consoante os próprios desejos e imagens. Sassen fala da experiência da cidade como algo de exótico – a experiência de uma espécie de “cena urbana” ajustada ao turismo composta por um caleidoscópio de espaços e experiências [2].
Estes novos padrões de consumo, pragmaticamente identitários (na medida em que são eles que inscrevem uma identidade e a diferenciam) ajustam-se particularmente bem ao étnico consumível. Daí que se possa falar de uma etnicidade permitida [3] ou seja, aquela que vende e que é reconhecida através da sua mercadorização. Neste preciso sentido, a performatividade da identidade equivale em larga medida à performatividade do consumo.
O étnico consumível, mercadorizável, deve ser equacionado com a perda de especificidade desse mesmo étnico. Digamos, em traços muito gerais, que entre o étnico e o local sempre houve uma operação de naturalização que produzia justamente a forma unitária que dava sentido à sua condição primordial. No mundo globalizado e diaspórico, o primordialismo que a identidade étnica reproduzia não é mais possível, devido à “disjunção” entre espaço e cultura [4]. As disjunções entre várias “paisagens” culturais e simbólicas, permitem combinações, extensões, e reinvenções das outrora tradicionais estruturas económicas, culturais e políticas locais. A interdependência dos sistemas num ambiente globalizado fazem com que as velhas injunções de pertença se tornem negociáveis. A etnicidade deixa de ser uma produção local para se tornar numa força identitária que aproveita as potencialidades dos novos espaços globais. Uma das forças da identidade étnica era pressupor uma forma peculiar de transformar aquilo que é produto cultural em “natureza” [5]. Todavia, nas condições da vida social líquida o “étnico” não é mais passível de ser justificado por algo que se encontra antes da escolha individual. Na realidade, soltando-se o génio da garrafa (a inscrição local do fenómeno étnico) não é tanto que a etnicidade se torne uma “força identitária” que se desloca agora pelo espaço global, como pretende Appadurai, mas justamente que ela deixa de ter força sem um investimento individual específico. Neste sentido, o étnico passaria a ser instrumentalizado; a sua “força” não se encontraria mais no pressuposto da origem natural e unificadora, mas antes nos investimentos individuais que aqueles que a ela aderirem estariam dispostos a nela canalizar. Ora, estes investimentos são sobretudo performativos e implicam que a identidade investida seja revelada pelas práticas individuais recusando desta forma um qualquer enraizamento natural da comunidade assim como esta é reconhecida tradicionalmente. O ajustamento entre a desnaturalização do étnico, e, como ficou dito atrás, a construção da identidade através do consumo, não se reveste de nenhuma violência à autenticidade das adesões ou a uma pertença primordial. Pelo contrário, ele revela a plasticidade do étnico quando este se torna basicamente desempenhado, actuado, segundo um guião individual e a adequação desta forma à mercadorização gerada pelos fluxos do capitalismo global. Paradoxalmente, embora o discurso seja o da ambiguidade e heterogeneidade identitária e expressiva, as suas manifestações práticas, porque apanhadas no caleidoscópio do consumo e da mercadoria, não deixam por isso de ser menos reificadoras.
Notas:
[1] Ver especialmente Butler, Judith (1997). Excitable Speech: A Politics of the Performative, New York: Routledge.
[2] Sassen, Saskia, and Frank Roost (1999). “The City: Strategic Site for the Global Entertainment
Industry”, Dennis R. Judd and Susan S. Fainstein (eds) The Tourist City, New Haven e Londres: Yale University Press, pp. 143-154.
[3] Wacquant, Loïc. (2007) Urban Outcasts: A Comparative Sociology of Advanced Marginality. Cambridge, UK: Polity Press
[4] Appadurai, Arjun (1990) “Disjuncture and Difference in the Global Cultural Economy” Public Culture, 2(2), pp. 1-24
[5] Bauman, Zygmunt. (2000) Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press.
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