Dimensão analítica: Condições e Estilos de Vida
Título do artigo: Da desvantagem à oportunidade social: potencialidades de projetos inclusivos de educação pela arte
Autora: Caterina Foà
Filiação institucional: Centro de Administração e Politicas Publicas (CAPP) ISCSP-UTL
E-mail: caterina.foa@gmail.com
Palavras-chave: educação pela arte, consumo cultural, responsabilidade social.
No âmbito da intervenção social interessa-nos investigar que motivações e objetivos incentivam as organizações e os contribuintes público-privados na criação duma proposta de valor para projectos de responsabilidade social válidos.
Assim, questiona-se que perspetivas sociopolíticas e atitudes culturais permitem otimizar o aproveitamento dos investimentos em projetos de integração social e obter a maximização dos benefícios.
Os mecanismos sociopolíticos da insegurança originam fenómenos de atomização e segregação social, a falsa convicção de poder e dever encontrar respostas individuais a problemas coletivos [1], alimentam a separação dualística entre “vítimas” das desvantagens sociais e as “outras pessoas”, amplificam as reações baseadas em preconceitos, desinteresse e caridade, favorecendo a ambiguidade na distinção dos papéis e das responsabilidades de atores públicos e privados e a descontinuidade e a esporadicidade dos apoios fornecidos.
Concordando com a observação de Nancy Fraser relativa à existência da “nítida fratura entre política cultural da diferença e política social da igualdade” adopta-se a perspectiva de que a cultura é um espaço de expressão e desenvolvimento humano e social profundo, sendo a responsabilidade social (individual e coletiva) uma condição originada através de processos formativos bem como de produção e consumo [2].
Compara-se dois casos de estudo de integração pela arte, projetos a realizados por organizações sem fins lucrativos [3] em contextos nacionais e socioculturais diferentes (uma prisão na Itália e bairros sociais portugueses), que adotam estratégias comuns na intervenção com os utentes e na relação com as comunidades de referência.
A investigação [4] fundamenta a aproximação entre prisão e bairros sociais citando teóricos que apontam a “estratégia de clausura e imobilização que associa e vincula a existência de prisões e guetos, onde cada um funciona como crescente área de captação e alimentação pelo outro, acompanhando e integrando a criminalização da pobreza” [4] e não por estabelecer uma continuidade dos percursos individuais dos residentes. Nestes territórios evidenciam-se, além da marginalidade, opressão, carência de modelos e perspetivas positivas, a multiplicidade de experiências e a riqueza de vitalidade e recursos inexplorados.
Vale La Pena Sound é um projeto de inserção sociocultural interno à Prisão San Vittore de Milão, um laboratório musical permanente com estudo de gravação onde cada ano dezenas de pessoas participam na criação, realização e produção em alta qualidade de um CD original, gratuitamente disponível à fruição e para download.
Sons da Lusofonia è uma associação cultural que organiza anualmente o Festival Lisboa Mistura no Teatro Municipal São Luiz, cujo cartaz inclui a exibição da Oficina Portátil de Artes (OPA), espectáculos multidisciplinares (a entrada livre) que nascem de workshop realizados por jovens dos bairros sociais e artistas profissionais em resposta ao levantamento das necessidades especificas, feito em conjunto com associações locais.
Os projetos criam uma total interdependência entre serviço social e produto cultural assentando em três pilares: valores (educação, responsabilidade, integração social do individuo tendo como perspetiva o bem-estar da comunidade), elevados padrões de qualidade (organizativa, produtiva, pedagógica, de conteúdos e comunicação), gratuidade do produto e estratégia de marketing com dupla vertente tradicional e social.
A viabilidade e a sustentabilidade são garantidas através de um sistema que engloba colaborações técnico-profissionais (remuneradas) e apoios público-privados (contribuições) e que gera uma rede de relações e trocas de valores (bens, experiencias, competências, recursos, boa consciência) entre vários parceiros (organizações, utentes, empresas e fundações, financiadores privados e particulares, trabalhadores, profissionais, instituições publicas). A visão de “parceria de cidadania” proporciona benefícios mútuos (económicos, relacionais, éticos, de reputação, conhecimento e entretenimento) e tem como objetivo superior partilhado a criação e a distribuição mais equitativas das oportunidades e do valor criado, numa lógica participativa do desenvolvimento inspirada no “desejo de comunidade”.
A política de distribuição contra a discriminação no acesso à cultura promove modalidades de consumo dotadas de sentido crítico e politico-cultural diferentes para os vários segmentos de públicos: o produto chega aos alvos sensíveis, transversalmente às hierarquias, envolvendo a participação das comunidades locais e de referência (passe do Festival gratuito para moradores dos bairros; eventos especiais no bairro/prisão convidando financiadores, decisores, artistas; envolvimento dos trabalhadores das empresas financiadoras e CD como prenda de Natal), e recorrendo às novas tecnologias, social media e internet ultrapassa barreiras físicas e culturais facilitando a difusão.
O produto ampliado inclui características tangíveis e intangíveis (estilo, imagem, conteúdo, finalidade), apresenta-se como demonstração, veículo e incentivo do processo de mudança social intrínseco e é multifuncional para os alvos internos e externos (retorno imediato da participação, concretização da missão, experiencia de capacitação, ferramenta de comunicação, resultado para os stakeholders, produto de entretenimento e informação).
Concretiza-se assim a aproximação entre elementos do sistema de produção e consumo e formas de realização material e simbólica com diferentes níveis de envolvimento: cognitivo, emocional, económico, psicológico e moral.
Experiencia e fruição artística juntam os parceiros no duplo contexto de “música” e “consumo” enquanto formas de “agir social dotadas de significado” [6], que apelam ao sentido de pertença e identificação, criam satisfação pessoal e prazer estético individual mas também denotam níveis de atenção, interesse e ação na esfera cultural e social.
Começando por influenciar motivações e comportamentos quotidianos ligados ao consumo e às causas sociais, incentiva-se uma transformação profunda e progressiva de ideias e valores de cidadania e participação, no plano individual e coletivo.
As atitudes de responsabilidade social estratégica dos parceiros externos permitem ultrapassar a lógica de caridade em prol do investimento social, para os projetos ganharem estabilidade e amplitude: pode estabelecer-se compromissos a médio e longo prazo disponibilizando competências (literacia, cursos, formação profissionalizante), serviços (i.e. serviços dos bancos financiadores, campanhas de comunicação, produções artísticas), recursos (tornar-se cliente das empresas sociais criadas pelos ex-utentes dos projetos), tempo e instalações (espaço de interação entre ex-utentes, profissionais, sociedade civil, os seus trabalhadores e stakeholders), fomentando educação, empreendedorismo e novos circuitos económicos.
A consciencialização e a partilha dos problemas sociais e das suas possíveis resoluções transformam a obrigação da contribuição social em oportunidades de cidadania ativa, através do desenvolvimento do bem comum a partir de acções de responsabilidade individual, “não para que todos sejam artistas mas para que ninguém seja escravo” [7].
Notas
[1] Bauman, Zygmunt (2009), Voglia di comunità, Roma-Bari: Editori La Terza.
[2] Foà, Caterina; Raquel, B. Ribeiro (2013), Da responsabilidade social das organizações ao consumo responsável. Projectos sociais e produtos culturais gratuitos, In H. V. Neto; S.L. Coelho (Eds) – Proceedings CIVE MORUM 2013 International Congress, Porto: Civeri Publishing, pp. 151-155.
[3] Kotler, Philp; Zaltman, Gerald (1971), Social Marketing: An Approach to Planned Social Change, Journal of Marketing, 35 (7), 3-12.
[4] Foà, Caterina (2010), Musica, Comunicazione e Responsabilità Sociale. Analisi comparativa di due progetti educativi per l’integrazione sociale in Itália e Portogallo, Milão: Università degli Studi di Milano.
[5] Bauman, Zygmunt (2009), Voglia di comunità, Roma-Bari: Editori La Terza.
[6] Di Nallo, Egeria.; Paltrinieri, Roberta (2006). Cum Sumo. Prospettive di analisi del consumo nella società globale, Milão: Franco Angeli.
[7] Rodari, Gianni (2006), Grammatica della fantasia, Torino: Einaudi.