Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social
Título do artigo: A religião na Europa: de um modelo de utilidade pública a alternativas em competição
Autora: Helena Vilaça
Filiação institucional: Faculdade de Letras da Universidade do Porto
E-mail: hvilaca@letras.up.pt
Palavras-chave: Religião, Europa, Utilidade pública.
Ainda hoje a teoria da secularização continua a assumir um papel dominante nos debates académicos sobre a religião. Só a partir dos anos oitenta do século XX a teoria da escolha racional se tentou impor como alternativa à secularização, contudo nunca se revelando adequada à compreensão da situação religiosa na Europa. De facto, a teoria da escolha racional pode ser um instrumento operatório mas no estudo de contextos sociais onde existe mercado e trânsito religioso, como é o caso dos EUA e, mais recentemente, a América Latina.
A Europa teve uma história de longa duração de monopólios e duopólios religiosos [1], isto é, países com Igrejas de Estado – católica, protestantes ou ortodoxa – e as alternativas religiosas nesses países, por regra, nunca foram muito expressivas nem tiveram condições para competir. Vários indicadores como a identidade, a prática e a crença religiosas, por regra em decréscimo geracional, parecem apontar para uma progressiva secularização e mesmo nos EUA, apesar do vigor religioso se manter, diminui o número daqueles que se identificam com uma determinada denominação.
Lembremos que o continente europeu tem uma herança cultural assente em três pilares: monoteísmo judaico-cristão, racionalismo grego e modelo de organização herdada do império romano. São estes os pilares remotos sobre os quais assenta aquilo que designamos como modernidade. Mais recentemente foram seus impulsionadores a Reforma Protestante, o Iluminismo, a Revolução Francesa, a Revolução Industrial e o triunfo do racionalismo e do pensamento científico. Todas estas mudanças provocaram uma perda sucessiva da importância da religião na sociedade e o pensamento dominante é o de que a secularização é intrínseca ao processo de modernização.
De facto, temos tendência a ver os padrões de vida religiosa na Europa como um protótipo, como um modelo que virá a ser seguido pelo resto do mundo. Mas porque não fazer o exercício inverso e concebê-la como a exceção? Importa, por isso, questionar se a modernidade é concomitante da secularização, ou seja se aquilo que aconteceu no velho continente sucedeu igualmente noutros lugares do mundo quando entraram em processos de desenvolvimento e de modernização. Nos EUA, por exemplo, o iluminismo assentou na “liberdade para crer” – não na “liberdade de crer” como aconteceu na Europa – e atuou através da religião mais do que contra ela. O grande crescimento económico desse país coincidiu com ondas de forte avivamento religioso e de expansão missionária. O mesmo está a acontecer no Brasil ou na Coreia do Sul.
A religião no mundo contemporâneo adquiriu uma complexidade não decifrável através do paradigma da secularização que assenta numa visão rígida da sociedade moderna. Shmuel Eisenstadt [2] ao introduzir o conceito de modernidades múltiplas e assim contrariando teorias clássicas da modernização, assentes na convergência das sociedades industriais, sugeriu que a melhor forma de se compreender o mundo é olhando para reconstituição permanente «da multiplicidade de programas culturais» [3]. Este parece ser um bom ponto de partida, não só para questionar hegemonia concetual da secularização como para incentivar um novo olhar sobre as reconfigurações do cenário religioso na Europa e respetivas tendências em curso.
O que hoje acontece é que existem duas economias religiosas na Europa lado a lado: uma de utilidade pública baseada na religião herdada e outra de mercado (ainda) incipiente. A religiosidade como utilidade pública é, segundo a socióloga britânica Grace Davie [4], uma “vicarious religion”, uma “religião de paróquia” em que um grupo restrito de pessoas zela, produz rituais ou mesmo acredita pelos outros. É comum a ideia de que a igreja deve estar ali para quando se precisar dela. Isto aplica-se não só às igrejas de Estado como a algumas minorias há muito estabelecidas num determinado país. Ora, esse modelo de religiosidade está em vias de extinção.
Há elementos seguramente indicativos de transformação da paisagem religiosa europeia que obrigam a entrar em linha de conta com as grelhas analíticas distintas das da teoria da secularização: nova economia, mercado, media e migrações estão entre as forças nucleares que conduzem a mudança religiosa. A Europa está a mudar e Portugal, apesar da sua singularidade, não foge à regra. Os sucessivos recenseamentos, observatórios internacionais como o European Values Study, o International Social Survey Programme, o World Values Survey têm revelado transformações em curso, algumas profundas e rápidas. Mais recentemente, o estudo sobre as “Identidades Religiosas dos Portugueses” [5] (IRP) é revelador da emergência de novas formas de religião. Principalmente nos últimos trinta anos, a população de religião não católica cresceu – segundo o IRP situa-se em 5,6% – e diversificou-se. A pluralização religiosa operou-se por duas vias: pela vinda de indivíduos de outros países e por via da conversão. De fora vieram, só a título de ilustração, o Islão, as religiões orientais, o cristianismo de leste e o cristianismo na sua versão evangélica pentecostal seja ela africana ou brasileira, esta última bastante competitiva.
A sociedade portuguesa, em consonância com as tendências dominantes no ocidente, começa a prefigurar um mundo religioso cada vez mais diversificado, facto que encontra as suas raízes no final do século XIX, mas cujo impacto social e público se traça apenas nas últimas três décadas. Dentro do cenário emergente, torna-se indispensável equacionar o papel da mobilidade, em especial dos fluxos migratórios e tudo o que o fenómeno implica em termos de diversidade cultural, étnica e religiosa.
Notas:
[1] Martin, David (1978). A General Theory of Secularization. Oxford: Blackwell.
[2] Eisenstadt, Shmuel (2001). Modernidades múltiplas. Sociologia, Problemas e Práticas, 35, 139-163.
[3] Cf. Shmuel EISENSTADT, «Modernidades múltiplas», 139.
[4] Davie, Grace (2007). «Religion in Europe in the 21st Century: The Factors to take into Account», in Inger FURSETH – Paul LEER-SALVESEN (ed.), Religion I Late Modernity: Essays in Honor of Pål Repstad, Trondheim: Tapir Academic Press, 37-53.
[5] Teixeira, Alfredo (coord.) (2012). Identidades religiosas em Portugal: representações, valores e práticas – Relatório. Lisboa, Universidade Católica Portuguesa: CESOP e CERC.