Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime
Título do artigo: Justiça austera e justiça sob austeridade
Autor: João Paulo Dias
Filiação institucional: Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra
E-mail: jpdias@ces.uc.pt
Palavras-chave: Justiça, meios, cidadania.
A justiça é um dos pilares do Estado, não importa o modelo que esteja em vigor num qualquer país. Gosta Esping-Andersen já em 1990 apontava para três grandes modelos de Estados-Providência, agrupando-os no social-democrata (Suécia, Noruega, etc.), conservador-corporativista (França, Alemanha, Portugal, etc.) e liberal (Estados Unidos, Inglaterra, etc.), consoante os níveis de proteção social que são assegurados pelo Estado, nas políticas de repartição da riqueza produzida por um país. Distingue igualmente a forma como os serviços considerados essenciais são organizados, disponibilizados e tutelados, entre uma natureza pública, mais ou menos gratuita, até uma natureza privada, fiscalizada pelo Estado e com custos partilhados, mas mais assegurados pelos cidadãos. O direito à justiça, neste contexto, é um direito inalienável dos cidadãos nos vários modelos, variando, igualmente, no nível de comparticipação assegurado pelo Estado. Até tempos recentes, os Estados procuraram sempre assegurar os serviços de justiça a um baixo custo, ou mesmo inexistente. Contudo, na última década assiste-se, em muitos países, a um duplo movimento: aumento das custas da justiça e redução do apoio no acesso ao direito e à justiça. A visão “universalista” do acesso à justiça, de serviços essencialmente gratuitos, para a transformar-se numa visão “restrita”, em que o Estado apoia principalmente os que mais necessitam, com os custos a aumentar consoante os níveis de rendimento dos cidadãos, regressando-se à análise que já em 1942 se encontrava descrita no famoso Relatório Beveridge, com a proposta de um Estado mínimo.
Na atual crise financeira que se vive em Portugal, no âmbito do programa de assistência internacional, colocou o Estado em stress profundo, enverando-se por uma espiral de contração da sua ação, por via de cortes radicais das despesas e aumento exponencial de impostos, que teve um efeito dominó recessivo em toda a atividade económica, com as graves consequências sociais visíveis e sentidas no dia-a-dia da população. A justiça não é exceção neste contexto, sentindo-se uma crescente dificuldade em garantir uma efetividade das suas funções. Sintomas evidentes desta retração da política pública da justiça são, entre outras: o aumento das custas judiciais, promovendo maiores dificuldades de acesso ao direito e à justiça; a redução de recursos humanos, sejam magistrados (juízes e magistrados do Ministério Público), funcionários judiciais ou outros profissionais de apoio à realização da justiça; a diminuição da oferta de serviços judiciais (seja de tribunais ou mesmo serviços de apoio à justiça como os meios alternativos de resolução de conflitos); o crescente desajustamento dos meios tecnológicos disponíveis face às necessidades atuais; a redução da capacidade operacional das forças policiais de investigação criminal; ou o descentramento das prioridades gestionárias na justiça, de operacionalidade para uma atuação de sobrevivência pelos mínimos.
A existência de uma situação de verdadeiro “choque judicial” não diminui a importância de melhorar a eficiência do seu funcionamento e a racionalização dos custos de funcionamento e operacionalização que, como é sabido, tem muitas áreas que necessitam de ser rentabilizadas, como são os casos dos equipamentos (com verdadeiros escândalos em termos de aquisição e aluguer de imóveis), das potencialidades que os meios informáticos proporcionam, uma gestão global mais flexível dos recursos humanos (em vez de compartimentados nos diferentes Conselhos Superiores), a integração dos tribunais administrativos na orgânica dos tribunais judiciais, a dotação de uma maior capacidade de ajustamento às dinâmicas populacionais (reforma do mapa judicial, ainda que com outros contornos da atual proposta do Governo) ou a promoção de reformas legislativas que assegurem maior celeridade (logo, menores custos processuais), ainda que por vezes com o risco de haver menores garantias processuais dos direitos dos cidadãos.
Esta situação de “choque judicial” tem obrigado o Ministério da Justiça a procurar soluções pragmaticamente mais baratas que garantam um funcionamento regular da justiça. Contudo, a forma e o modo como pretende alterar as práticas existentes tem gerado múltiplas manifestações de descontentamento junto dos vários profissionais, atores políticos e cidadãos. Deste modo, uma política pública que devia pugnar por uma justiça austera, ou seja, rigorosa, inflexível nos seus princípios e severa na sua atuação acaba por se transformar, por via da política de austeridade geral, numa justiça incapaz, instável, irregular e desmotivadora para os seus profissionais. O resultado, à imagem de outras áreas de atuação do Estado, acaba por ser uma justiça pálida, frágil e com uma imagem penosa, como tantas vezes somos forçados a assistir pelo palco mediático dos grandes processos que reforçam a imagem de uma justiça fraca sobre os fortes e forte sobre os fracos. As recentes mudanças dos protagonistas na justiça, com as que se esperam nos próximos tempos, podem indiciar, mesmo assim, uma vontade de alterar a realidade da justiça, conferindo-lhe uma melhor capacidade e coordenação. Contudo, o que seria um “refresh” de dinamismo pode ficar, desde logo, minado pela incapacidade de atuar por falta dos meios necessários.
Assistimos, assim, à inversão radical de uma política que, durante quase três décadas, privilegiou o crescimento do sistema judicial em recursos humanos, equipamentos e orçamento, mas que, apesar disso, não conseguiu responder à procura e inverter a tendência de acumulação processual. Curiosamente, a inversão recente desta opção política com a redução do orçamento, dos recursos humanos e do investimento nos equipamentos, concomitantemente com um conjunto de reformas que procura alterar as práticas de administração dos tribunais e gestão processual, revela uma razoável capacidade de adaptação do sistema judicial, que se traduz numa melhoria da produtividade em quase todas as áreas jurídicas, com a referida exceção da justiça cível (ação executiva) que tem contribuído para a manutenção do desequilíbrio estrutural do sistema judicial. Não se pode, contudo, cair na tentação de pensar que uma redução dos meios levará a uma otimização da sua gestão, com melhores resultados operacionais, pois, como as teorias de gestão provam, a resiliência judicial tem limites e não pode ser levada até à exaustão total, sob o risco de quebra fatal. Além de que, com este ajustamento forçado, a proatividade judicial fica suspensa, o que, por si só, é um sinal muito negativo para a saúde da democracia.
A reinvenção da democracia, como pugna Boaventura de Sousa Santos, exige que o próprio Estado seja colocado sob um processo de reflexão profundo, não para se tornar um Estado mais fraco como desejam as teorias neoliberais, mas para se transformar num ator social forte, com capacidade para cumprir as aspirações dos cidadãos que o compõem. A austeridade que agora impossibilita a atividade normal do Estado social português, e que limita o exercício da justiça, deve ser reconfigurada, com um grande protagonismo dos operadores judiciários, para que se transforme numa justiça austera, capaz de colocar em prática os princípios fundamentais que garantam os direitos de cidadania.
Notas
[1] Beveridge, William. 1942. Social Insurance and Allied Services. London: His Majesty’s Stationery Office.
[2] Esping-Andersen, Gosta. 1990. The Three Worlds of Welfare Capitalism. Cambridge: Polity Press & Princeton: Princeton University Press.
[3] Santos, Boaventura de Sousa. 1998. Reinventar a democracia. Lisboa: Gradiva.