Artes e públicos entre mediação, emancipação e participação

Dimensão analítica: Cultura e Artes

Título do artigo: Artes e públicos entre mediação, emancipação e participação

Autora: Rafaela Neiva Ganga

Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Fundação Universidade do Porto

E-mail: rafaela.ganga@gmail.com

Palavras-chave: Mediação, Emancipação, Participação.

Neste texto organizam-se algumas ideias sobre a edição de 2012 da conferência Em nome das artes ou em nome dos públicos? pretendendo-se colocar algumas questões que possam, eventualmente, alimentar o debate. Esta conferência internacional, organizada anualmente pelo Serviço Educativo da Culturgest (http://conferencia2012enaenp.blogspot.pt/), discute protagonistas, estratégias e espaços de relação entre públicos e artes, muito particularmente, entre instituições culturais e seus (não) públicos.

Esta discussão parece-me premente quando se trata de debater o trabalho educativo, o trabalho educativo não-escolar e, muito particularmente, o trabalho educativo de âmbito cultural e artístico. Neste sentido, talvez seja o momento de lembrar o subtítulo da conferência: mediação, emancipação e participação. Conceitos muito caros a todos/as que pensamos e fazemos este campo. Terão estes conceitos relações de causalidade intrínsecas entre si, tais como: convocar a participação dos públicos é mediar culturas e potenciar a emancipação dos mesmos? Vejamos alguns contributos dos dois dias de trabalhos.

Shirley Apthop esclarece, desde logo, que para si mediar é mediar conflitos. Não será a mediação cultural efetivamente uma mediação de conflitos? De conflitos de sentido, cognitivos, sensoriais, de interesses, saberes e de reconhecimentos cultuais. Ocorre-me à ideia, quando ouço a sua comunicação, os contributos de Paul Willis [1] e de Nancy Fraser [2] na compreensão dos poderes associados a quem é reconhecida a legitimidade e o poder da palavra. Ou seja, a quem é que é reconhecida a legitimidade para construir discurso sobre a obra e partilhá-lo.

Na mesma ordem de sentido, Shirley Apthop não deixa de lançar o desafio de pensar o papel e o lugar da tecnologia no quotidiano da educação cultural e artística. Rui Vieira Nery, no comentário à intervenção de Shirley Apthop, afirma que a herança de uns deve ser a herança de todos e que a transmissão de informação não diminui a dimensão crítica e criativa, mas deve ser percebida como uma espécie de instrumento. Tal pressuposto recoloca a discussão sobre a definição que se pretende adotar, lembrando que educar nem é apenas ensinar, nem apenas aprender.

Maria Acaso, numa encorpada apresentação ao final da tarde, propõe que se rasgue a membrana entre as pedagogias teóricas e as práticas, assumindo que os/as educadores/as são produtores/as culturais empoderados, porque a pedagogia é uma forma poderosa de apropriação da realidade. Maria Acaso não parece estar a falar de mediação, mas antes de participação, aprendizagem e poder.

Na manhã do dia seguinte, reservado às acções, Miguel Horta conta uma estória sobre uma estória. Obra sobre obra. Será esta a proposta que Acaso fazia no final da tarde anterior?

As estórias, a contada pelo Miguel Horta e a desenhada pela Paula Rego, partilham objectos, cores e personagens, mas acima de tudo parecem ter um imaginário comum. Miguel oferece ao público a sua obra de costas voltadas à obra, a da Paula Rego, entenda-se. Posição no espaço da galeria intencional dizia, mas, que deixa alguns elementos do público indecisos face aos hiperlinks possíveis entre uma e outra obra. Levanta-se a dúvida face ao que na estória do Miguel é informação sobre a estória da Paula Rego, na medida em que se percebe uma óbvia intertextualidade construída entre ambas. Esta dúvida surge quando se assume que a obra do Miguel não precisa de informação, deve ser informação sobre a verdadeira obra. Por conseguinte, a obra do Miguel deveria ser a mediação entre os públicos e a História da Arte. Se assim fosse, mediação não seria a ponte entre públicos e obras, mas entre públicos e discursos institucionais sobre as obras.

Após a estória do Miguel discute-se, em pequeno grupo, se o papel dos serviços educativos deve ser de educare ou educere; se deve fornecer a informação que as múltiplas disciplinas, entre elas a História da Arte, constroem sobre a obra, ou se se deve acompanhar a construção de conhecimento. Esta dúvida acompanhará toda a conferência.

A proposta de ação seguinte, apresentada por Lorena Querol e Pedro Pereira Leite para a obra Coty de Amadeo de Sousa Cardoso parte de um monte de panos colocado em cima de dois bancos, à frente da obra. Esse é o mote para o desenrolar de uma miríade de identificações e propostas de interpretação da obra. Trocam-se cores, partilham-se sensações, saberes, projeções e dúvidas, com pouca ou nenhuma interferência e explicação por parte dos dinamizadores.

Uma vez mais, na reflexão final, os públicos desta ação continuam com sérias dúvidas face à legitimidade pedagógica da proposta que lhes havia sido feita. Apoiados no real mais real do que a realidade, que Maria Acaso nos falava no dia anterior, para dizer algo como: “mas eu li na página na Gulbenkian, no iphone, que afinal a obra quer dizer…”. Ora aí está um exemplo do papel da tecnologia de toque digital instantâneo na educação cultural contemporânea – libertar o/a dinamizador/a de uma educação bancária, importada diretamente dos quadros negros da escola do século XX. Questionam-se legitimidades de discurso e até verdades históricas tidas como aceites e acentuadas em websites, iphone, ipads e afins, argumentava a dinamizadora que procuravam suportar a sua proposta na teoria da ecologia dos saberes de Sousa Santos [3], na qual se procura a validação pelos saberes coletivos. Mas o que são saberes face à verdade da hiper-realidade?

Nos debates em que participei proliferam as questões: O mediador pode/deve assumir o lugar de produtor de uma obra em resposta à de outro artista, ou o mediador deve explicar, recorrendo ao conhecimento académico e institucional, a obra aos públicos? O que se acrescenta ao que o público já sabe quando entra pela porta do museu; Qual é o papel da História da Arte e de outras ciências associadas?; O trabalho de mediação é tão obra quanto a do artista? E quando a mediação é feita por um artista? E o curador e/ou diretor do museu não tem uma palavra a dizer neste debate?

A mediação artística discutida parece ser definida pelas relações entre tipos de conhecimento, entre: conhecimentos institucionalmente reconhecidos e disciplinarmente encaixotados, como o científico, o filosófico, o artístico – associado aos especialistas – e o conhecimento de senso-comum – associado aos públicos. Portanto, mediar seria construir uma via de sentido único entre os saberes dos especialistas do campo – artistas e curadores – e os públicos, na qual a receção sensível da obra de arte é retirada da equação.

De forma surpreendente mas invariável o debate desemboca numa velha questão de fundo, no campo da educação. A educação (cultural e artística) é ou deve ser educare ou educere? Isto é, se educar é ensinar ou apoiar a aprendizagem e nestas duas possibilidades que relações se potenciam com participação, mediação e emancipação.

Notas

» Participação na conferência Em nome das artes ou em nome dos públicos? financiada pelo projeto “Keep it simple, make it fast! Prolegómenos e cenas punk, um caminho para a contemporaneidade portuguesa (1977-2012)” (PTDC/CS-SOC/118830/2010), co-financiado pelo COMPETE – Programa Nacional Fatores de Competitividade e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, sediado no Instituto de Sociologia, com coordenação de Paula Guerra.

[1] Willis, P. (1990). Common Culture: Symbolic work at play in the everyday cultures of the young. Boulder: Westview Press.

[2] Fraser, N. (2002). A Justiça Social na Globalização: Redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 7-20.

[3] Santos, B. S. (2007). Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. – CEBRAP, nº 70, 71-94.

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