Modernidade, sociedade tipográfica e ordem do livro e da leitura

Dimensão analítica: Cultura e Artes

Título do artigo: Modernidade, sociedade tipográfica e ordem do livro e da leitura

Autor: Nuno Medeiros

Filiação institucional: Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa – Instituto Politécnico de Lisboa e CesNova – Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa

E-mail: nuno.medeiros@fcsh.unl.pt

Palavras-chave: Livro, Leitura, Modernidade.

Um dos traços que melhor caracterizam as sociedades contemporâneas, conquanto lhes seja atribuído um grau de desenvolvimento material e o funcionamento político que se baseie em grande medida na noção de espaço público de circulação das ideias, é o de que são sociedades tipográficas, grandemente definidas e ordenadas pelo objecto material e conceptual livro – objecto especial, elevado simbolicamente a paradigma do impresso e do tornado público. Evidentemente que o vocábulo “tipográficas” com que se nomeia este tipo de sociedades é, no quadro tecnológico actual, alargado a outros campos de expressão escrita, editada e publicada, da fotocópia à desmaterialização e virtualização do texto. A relevância do livro enquanto expressão máxima de uma cultura suportada no texto escrito e na capacidade da sua descodificação mediante o exercício da leitura é a trave-mestra de um universo complexo e contraditório, nisso residindo, aliás, parte substancial do seu interesse enquanto foco de análise e reflexão.

Neste quadro, no que respeita à dimensão da sua natureza tipográfica, a contemporaneidade confere justamente ao domínio da escrita e da leitura o estatuto de ferramentas essenciais ao desenvolvimento e aprofundamento de um factor social de progresso. Origem e destino das faculdades de escrita e leitura, o livro emerge e mantém-se solidamente como símbolo de civilização, como marca de ordenamento do mundo e como cunho de domesticação e fixação do pensamento, inscrevendo-se frequentemente num exercício de comparação, quantas vezes evolucionista, entre sociedades letradas e pré-letradas. O texto é, então, frequentemente visto como monumento, fixação hierática que estabelece por si mesma uma hierarquia entre estruturas sociais consoante o predomínio da cultura escrita ou da cultura oral. Estas assentariam na volatilidade textual, distinguindo-se das primeiras por demonstrarem incapacidade de estabilização narrativa. No centro da cultura escrita, mais ainda impressa, radica-se o homo scrivens, configurando-se a ideia e a prática escriturais como garantia de avanço no contexto das faculdades humanas, como razão do controlo das ideias e como elemento de controlo do mundo.

É desta conjunção que resulta uma das características mais típicas das sociedades tipográficas, a da fixação textual como caução de verdade. Através de um longo percurso histórico que até recentemente procurou circunscrever os textos e os autores eleitos para publicação a um clube restrito, muitas vezes com um cunho erudito e associado ao que de mais belo o espírito humano produziu, consolidou-se a crença generalizada que o processo de publicação, como processo de selecção, constituiria por si só uma garantia para o leitor, que associa frequentemente o publicado a legítimo. O leitor, confrontado com o escrito tornado público por um circuito de outorga de verdade (o da edição), consignar-lhe-ia um valor de confiança, assegurado de que o conteúdo editado seria sinónimo de correcção, afinamento, depuração, elevação. Em sociedades assim configuradas, o tipográfico significa autonomia e validação de um texto e da sua autoria. Por ser publicado e, desse modo, ter passado por um suposto processo de escolha e escrutínio, um texto passado a livro ganha esse poder mágico do transporte de verdade, instituindo a cultura tipográfica – e, de certa forma, a cultura do copismo manuscrito antes dela – como regime de autoridade. Em suma, o texto editado – pressupondo por isso actuação editorial – é visto como verdadeiro e recomendável.

A cultura escrita e, com uma intensidade maior, a cultura impressa souberam edificar-se em torno da ideia de que é na capacidade de ler e escrever que reside grande parte do acesso a este regime de verdade e aos benefícios que resultam desse acesso. Se esta asserção valeu aos círculos letrados durante séculos um estatuto de reduto de esclarecimento, a grande transformação na perspectiva do livro como agente de transformação social ocorre doutrinariamente com o advento da época moderna. Apesar de ser detectável anteriormente, a ideologia da capacitação individual pelo contacto com o livro e, através deste, com a escrita e, sobretudo, a leitura acentua-se com a generalização justamente entre as comunidades de esclarecidos de uma apologia de aquisição escolar das faculdades de decifração e participação na cultura impressa como forma de inserção no mundo do pensamento autónomo e do conhecimento. O projecto de fabrico do homem moderno passaria, então, por dotar os excluídos de utensilagem intelectual controlada pelos poderes públicos e de acordo com os seus propósitos pela via de uma escolarização operada pelo Estado ou supervisionada por este.

A escola oitocentista, alfabetizadora, uniformizadora e tendencialmente massificante, procura puxar o número máximo de pessoas para o processo de construção de um Estado moderno com recurso à coligação de um programa e de um método educativo assente no domínio da leitura e da escrita, coligação essa que se assumiria como promotora da formação e solidificação de um conjunto comum de referências desejavelmente em toda a população. Esta proposta, a um tempo doutrina e ideologia, foi um dos grandes fundamentos da expectativa política que se imiscuiu gradualmente na acção e no discurso dos agentes governativos e especializados de que a correlação entre uniformidade educativa universal e a homogeneidade das práticas de conhecimento e recreação baseadas no domínio da escrita e da leitura haveria de constituir a plataforma social de participação de cada vez mais pessoas na esfera de actuação pública e, portanto, do Estado. A matriz liberal em que se caldeou este pensamento não deixou de trazer consequências ao nexo que tende a ligar, frequentemente de modo inevitável, a difusão do livro e da leitura à expansão de um espírito crítico e informado como recurso de desenvolvimento e democracia.

As sociedades tipográficas viabilizam, nesta medida, a hegemonia do acesso à informação, com diferentes níveis de densidade e profundidade crítica, pela via da leitura do que é publicado, promovendo uma visão qualificada de leitura e reduzindo a polissemia do conceito, que não abarca num quadro referencial livresco formas e modos de ler vistos como desqualificados, marginais ou mesmo invisíveis. Esta posição dominante em torno da articulação entre descodificação da linguagem escrita e progresso, sustentada na produção e no consumo livresco e decorrendo, por isso, de uma tradição erudita e bibliófila, é portadora de um indisfarçável pendor impositivo – e, portanto, revestido de certa violência simbólica – da valorização política da leitura nas sociedades assentes em regimes democráticos como centro de percepção e aplicação do vector cidadania-hábitos de leitura. Num quadro de expansão política de regimes democráticos e da constituição alargada de um mercado industrial de cultura num quadro de permanentes assimetrias sociais, e este o pano de fundo de um dos atributos mais consistentemente antagónicos das sociedades tipográficas: a tensão, eventualmente insanável, que marca a coexistência entre uma cultura livresca que se procura massificar de maneira uniformizadora e a posse de livros e de hábitos de leitura como um dos mais fortes eixos de distinção e diferenciação entre pessoas, suscitando um contínuo de comportamentos que vão da ostentação ao repúdio.

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